Criador de "A Bela e a Fera" aposta em diversidade em animação da Netflix
Com uma carreira consolidada e recheada de sucessos que vão de "A Pequena Sereia" e "A Bela e a Fera" a "Pocahontas", Glen Keane trabalhou mais de 35 anos na Disney como designer e animador e, recentemente, decidiu se aventurar em novos mares. Aos 66 anos, ele marca sua estreia como diretor em "A Caminho da Lua", nova animação-musical da Netflix, que estreia em 23 de outubro.
O longa acompanha Fei Fei, uma jovem chinesa, ouvindo a mãe contar sobre a lenda da Chang'e, a deusa da Lua, que vive exilada no planeta após a morte do parceiro Hoyui. Assim que a mãe de Fei Fei morre devido a uma doença grave, a garota faz de tudo para provar que Chang'e é real, embarcando em uma aventura extraordinária, cheia de músicas, momentos tocantes e paisagens incríveis, que foram até inspiradas na capa do álbum "The Dark Side Of The Moon", do Pink Floyd.
Em entrevista a Universa, Glen contou como foi o processo de criação e o por que desta história ter o intrigado tanto a ponto de querer dirigi-la. Representatividade chinesa-americana e feminina também entraram na discussão, assim como o debate sobre o universo da animação ser dominado por homens. Keane acredita que "há uma grande mudança acontecendo" e que cada vez mais as mulheres estão ocupando os espaços que há 30, 40 anos eram inimagináveis.
"A Caminho da Lua" mostra uma protagonista forte e empoderada. Fei Fei é supercorajosa e inteligente, e isso se tornou uma representatividade forte. O que te fez querer dirigir esse projeto?
A razão pela qual eu quis dirigir foi justamente pelo que você acabou de falar. Eu senti isso. A personagem principal é o veículo que guia cada criança e adulto através deste filme. Eles vão ver e sentir através de seus olhos e alma. Para mim, como um animador, eu passei minha carreira fazendo personagens como essa. Ariel [de "A Pequena Sereia"] pareceu, em diversas maneiras, como uma personagem-irmã, pois acreditava que o impossível é possível. Fei Fei é tão inteligente, ela sabe de ciência, tecnologia, física e matemática. Então você está criando essa faísca de inteligência e também uma faísca de fé na mãe, que vê o que os outros não veem.
Por falar em liderança feminina, como foi ser um homem liderando esse tipo de projeto? Você teve alguma consultoria para lhe dar embasamento e dicas?
Eu sou cercado por mulheres incrivelmente talentosas. Eu nunca tive dificuldade de viver na pele de uma personagem feminina que eu animei, de Ariel a Pocahontas ou Rapunzel a Fei Fei. Pra mim, é sobre aquela sensação de recusar ser derrotado, que recusa a aceitar uma barreira que está em sua frente. Como disse, estou cercado de perspectivas de muitas mulheres talentosas, particularmente asiáticas, e eu aprendi nesse filme algo que eu chamo de mentoria reversa. Eu tipicamente estou ensinando os outros, mas neste filme eu aprendi a ser ensinado. Celine Desrumaux foi minha designer de produção e ela é incrível, e de alguma forma nós criamos o que "O Mágico de Oz" fez, indo do preto e branco para a tecnicolor. Mas como nós poderíamos fazer isso em CG e que não parecesse com um mundo fantástico da arquitetura moderna? Tinha que ir além.
Nós visitamos juntos a China e ela disse: "Glen, olhe essas paredes brancas!" e eu respondi: "Sim, são brancas", e ela: "Não, não são brancas! São azuis, verdes, amarelas e roxas!" E ela estava falando como o branco reflete todas essas cores. Ela pegou essa ideia e as luzes de Lunaria viriam das lágrimas de Chang'e e elas brilhariam como a capa do "The Dark Side of The Moon", do Pink Floyd. E eu estava pensando: "Como poderia desenhar esses personagens para parecerem inéditos e diferentes? E tudo que eu desenhava parecia da Disney. Isso não era Disney, isso era de outro estúdio, era como uma música que não conseguia tirar da minha cabeça.
"Achei no Facebook um desenho da Ariel que pensei que fosse meu, mas quanto mais olhei percebi que não era. Era melhor que o meu. Era tão cativante e novo. Era da Brittany Myers. E eu contei à minha produtora, Gennie Rim e disse: "Quero aprender com ela", e Gennie respondeu: "Vamos contratá-la". (...) Esse filme inteiro foi a experiência de aprender com maravilhosas e talentosas mulheres."
E você esperava essa troca de conhecimento, aprender com uma moça mais nova?
Eu acho que comecei a esperar porque minha própria filha, Claire Keane, é uma artista incrível e eu aprendi muito com ela em "Enrolados" e vejo isso em meus netos, sempre me surpreendo com o que fazem. Eu espero que algo maravilhoso surja deles, então eu já estava preparado e não foi difícil eu estar aberto a isso. Eu noto que as pessoas mais novas são muito respeitosas à minha idade e experiência, e ficam mais quietas, mas eu não os deixo. Eu os incentivo a falar o que eles pensam e suas ideias sempre me fazem um melhor artista.
Muitas pessoas dizem que a animação é uma área dominada por homens. Você que isso está mudando para mulheres animadoras?
Sim. Essa é uma declaração que ninguém fará por muito tempo. Quando eu estava na Disney, eu acho que havia só uma mulher na animação quando comecei em 1974. Certamente isso está mundando. Neste filme, a minha produtora Gennie Rim fez de sua prioridade que nós contratássemos a maior quantidade de mulheres possível. E quando eu vou às escolas de arte pelo país, a maioria é composta por mulheres. Há realmente uma grande mudança acontecendo.
Gostei muito da cena em que Fei Fei entra na Câmara da Tristeza. Foi poderoso assistir porque ela tão jovem já se sentia assim. Você mostra a complexidade dos sentimentos da garota. Qual a principal mensagem que deseja que as pessoas captem após ver o filme?
Audrey Wells estava escrevendo a história sabendo que ela não viveria para ver o filme [a roteirista estava doente quando escreveu, da mesma forma que a mãe de Fei Fei fica na trama. Audrey faleceu em 2018 antes do filme ser vinculado]. E não foi uma ideia teórica lidar com dor e perda, foi tão real porque seria o que ela deixaria para a filha e o marido, para que eles seguissem em frente sem ela. Ela precisava dar a eles não apenas entretenimento, mas verdade. Levamos bastante ao coração. Foi muito emotivo para nós quando Audrey faleceu. Fazer esse filme foi uma experiência dolorosa para nós, passamos por tantas caixinhas de lenços de papel na ilha de edição. Ninguém está imune, nenhuma criança ou adulto está imune de sofrer perdas e dor.
Numa hora Fei Fei diz: "Eu só quero que as coisas voltem como eram antes". Quem de nós não diria isso hoje num mundo em meio à pandemia? Nós todos queremos que a vida volte. Mas a gente vive seguindo em frente e isso leva Fei Fei à Câmara. A beleza da história é que lida com assuntos reais envoltos em música, alegria e cores; sabe, não precisa ser sombrio para fazer isso. Até que a Fei Fei precisa entrar naquela câmara e ela enfrenta o que estava tentando evitar. Isso faz com que ela entre dentro de si mesma. O que nos liberta é alguém que partilha da mesma dor que a nossa e juntos nós nos ajudamos a nos libertar disso. Ela liberta a Chang'e e Chang'e liberta Fei Fei. As lágrimas de tristeza viram lágrimas de alegria, e acho que esse é o presente que Audrey estava colocando no DNA deste filme.
Nessa era pós-"Parasita" e filmes como "The Farewell" ganhando destaque, como foi fazer essa animação chinesa-americana? Você se sentiu pressionado porque representa uma "minoria" que muitas vezes nem chega a ser representada ou é retratada de forma estereotipada no cinema?
Meu sonho é que o futuro da animação seja outras culturas contando suas próprias histórias para o mundo. Não sou eu como americano contando uma história sobre a China. É a cultura chinesa contando sua história. Eu tive o privilégio de dirigir isso, mas trabalhamos muitos para estarmos cercados por pessoas talentosas da Ásia, mulheres talentosas, muitas que se identificavam com a Fei Fei e Chang'e. Nossa equipe se construiu assim.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.