"Realizei o sonho de colocar silicone, peguei Covid e vi a morte de perto"
Alexya Salvador, primeira pastora transexual da América Latina, é uma dos 5,2 milhões de brasileiros que contraíram a Covid-19 desde que a pandemia chegou ao Brasil, em março. Por pouco, ela não entrou também para a estatística dos mais de 155 mil pessoas que morreram em decorrência do vírus.
Pouco depois de realizar o sonho de colocar próteses de silicone, há um mês, Alexya começou a sentir os primeiros sintomas: febre alta, dor do corpo, dor de cabeça, perda do olfato e do paladar. E, no primeiro dia de campanha eleitoral [ela concorre à Câmara de São Paulo pelo PSOL], se despediu do marido e dos três filhos para ir ao hospital, onde ficou por uma semana, isolada e sem conseguir respirar sozinha. A Universa, ela relata a "nítida sensação de que ia morrer", as sequelas deixadas pelo vírus e a percepção de que sua vida é o antes e o depois da Covid-19.
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"Colocar próteses de silicone era o sonho da minha vida. Eu quase coloquei há seis anos, mas abri mão da cirurgia para ser mãe do Gabriel, meu primeiro filho, porque ter filho é caro, não dava para fazer as duas coisas.
Desta vez estava programada para abril, foi adiada por conta da pandemia. Consegui agendar para setembro, porque a clínica me garantiu que todos os protocolos de segurança seriam tomados. Eu estava muito feliz, muito animada por finalmente ajustar meu corpo à forma como eu me sinto. E só saí de casa duas vezes depois da cirurgia, as duas para ir ao médico que acompanha a minha recuperação.
Na segunda consulta eu estava bem, tudo normal, mas no dia seguinte acordei como se tivesse levado uma surra. Sentia o corpo doendo, nariz escorrendo e uma dor de cabeça que eu nunca senti na vida, de muita intensidade.
Olhei para o meu marido e falei 'Roberto, isso aqui não é uma gripezinha não'.
Fiquei em repouso, tive febre alta e, à noite, quando fazia a janta, já não senti o cheiro do alho que estava refogando. Até senti o gosto da comida por algumas horas, mas depois isso também desapareceu. Até que no quinto dia com sintomas, comecei a sentir falta de ar.
Para não assustar minha família, não falei nada e fui ao hospital. Fui dirigindo a 20 km/h de tanta dor de cabeça e falta de ar. Lá, eles colheram o PCR [exame para diagnóstico de Covid-19 feito com cotonete] e confirmaram que eu estava infectada, mas me mandaram para casa.
Meus filhos também começaram a ter sintomas. O mais velho, o Biel, é especial, não sabe se expressar muito bem, isso me deixou muito preocupada. Pensei 'pronto, a Covid chegou e ficou'. Naquela noite, não dormi e acordei ainda pior. Voltei ao hospital, fizeram uma tomografia, que mostrou que eu tinha 50% dos pulmões comprometidos. Nisso, o médico disse: 'Liga para sua família, você vai ficar internada e muito provavelmente na UTI'.
Foi como se meu chão se abrisse. Eu sou hipertensa, ex-fumante. Só conseguia pensar nos meus filhos, pensar 'vou morrer e deixar meu marido sozinho com três crianças'.
O caminho entre a sala de observação e o quarto em que fiquei internada, antes de ir para a UTI, foi muito longo. Eu queria respirar, puxava o ar com força, sentia o coração disparar, e o ar não vinha. As duas enfermeiras que me levavam diziam 'calma, respira devagar, chegando no quarto vamos colocar o oxigênio', mas a sensação era de que não chegaria lá nunca. É nítida a sensação de que você vai morrer, não desejo isso nem para o meu pior inimigo.
Em junho, perdi uma grande amiga para o coronavírus [Amanda Marfree, transexual ativista pelos direitos LGBTQ+], eu fui a última pessoa a falar com ela, por vídeo. Pensei 'acabou, vou ficar por aqui mesmo'. Mas senti uma presença muito forte dela comigo o tempo inteiro. Eu pensava nela e dizia 'amiga, dá uma força para a trava aqui voltar para casa'.
Não cheguei a ser entubada, mas passei o tempo todo ligada ao oxigênio, com muita dificuldade de respirar. Como eu estou recém-operada dos seios, a prótese ainda não tinha nem um mês, os enfermeiros não podiam me virar de bruços [manobra para ajudar a abrir os brônquios e facilitar a respiração do paciente]. Mas graças a Deus meu organismo reagiu sem que eu precisasse ir para o tubo.
Enquanto eu estava internada, houve uma movimentação muito bonita por mim, gente torcendo, fazendo corrente de oração. Mas também teve gente colocando em rede social que Deus estava fazendo justiça, que 'essa pastora travesti tem que morrer mesmo'. Bom, azar o deles, porque dessa vez eu não morri.
Passei uma semana no hospital. Neste período, vi pelo menos dois pacientes morrerem. Um dia a médica entrou no quarto e disse: 'Vamos para casa? Seus filhos estão te esperando'. Minha primeira reação foi agradecer a Deus. Então a enfermeira veio com uma plaquinha, a cadeira de rodas, e todos os profissionais desceram para aplaudir. Foi muito emocionante.
Agora, todo dia parece diferente. Sinto que nasci de novo, que tenho uma outra chance para ser melhor mãe, melhor esposa, melhor pastora. Outros 150 mil brasileiros não tiveram essa chance.
Ainda sinto muita fadiga, e mesmo quando estou só sentada, respirando, tenho dificuldades de puxar o ar. Também sinto uma certa confusão com falta de memória e em relação à direção: tem hora que eu vou para a esquerda e tombo para a direita involuntariamente. Fico calma em relação a isso porque os médicos me alertaram que poderia acontecer e que deve ser passageiro, só não sabem dizer por quanto tempo vai ficar assim.
Minha vida está dividida entre antes da Covid-19 e depois. No dia em que cheguei em casa, após a alta, disseram no jornal que naquele dia 148 pessoas morreram com a doença em São Paulo. Poderia ter sido 149, mas eu voltei pra casa."
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