Tabu, constrangimento e falta de tempo: por que mulheres negligenciam saúde
Ao longo dos dias 22 e 23 de outubro, Universa reuniu 18 mulheres de diversas gerações e especialidades para discutir questões sobre saúde e sexualidade femininas. Totalmente digital, o Festival Dia V abordou menstruação e menarca, liberdade sexual, autoconhecimento íntimo, ginecologia natural e incômodos que ainda são tratados com naturalidade, mas estão longe de serem normais.
Estima-se que uma parcela significativa da população mundial menstrue mensalmente. O desenvolvimento do corpo feminino se inicia antes mesmo da menarca (a primeira menstruação), com seios tomando forma, pelos pubianos surgindo e o amadurecimento do útero, entre outros sinais. Quando vem a menstruação, chegam com ela também os primeiros tabus em relação a corpo e a sexualidade, que acompanham a mulher por toda sua vida.
Assim nascem os tabus
Uma pesquisa realizada em 2018 pela Kyra Pesquisa & Consultoria com 1.500 mulheres de cinco países - entre os quais, o Brasil - apontou que 54% daquelas entre 14 e 24 anos não sabiam nada ou tinham pouca informação sobre menstruação no momento em que sangraram pela primeira vez. Outras 39% assumiram que, ao pedir um absorvente emprestado, o faziam em segredo por ter vergonha de estarem menstruadas. O tema inspirou até a criação de um dia internacional para a conscientização da higiene menstrual, celebrado desde 2014 em 28 de maio.
No painel "Segredo, solidão e tabus: da menarca à menopausa", que abriu o Festival Dia V, a rapper e compositora Mc Soffia, 16, compartilhou sua experiência que, em muitos aspectos, é bastante comum a tantas meninas. No dia em que menstruou pela primeira vez, ela estava na casa do pai, sem figuras femininas por perto. "Me tranquei no banheiro e, chorando, liguei para minha mãe. Só consegui contar a alguém pessoalmente quando minha avó chegou", lembra. Sua mãe e empresária, Kamilah Pimentel, sempre buscou orientar a filha sobre o que fazer quando esse momento chegasse.
"É importante explicar como as coisas funcionam, principalmente em relação ao corpo feminino, ainda que de forma lúdica e respeitando a idade da menina. Mas precisa ser falado", opina Kamilah. Outra participante da conversa, a ginecologista e obstetra Isabela Correia integra o projeto Afrodite da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), que busca orientar mulheres gratuitamente sobre sua sexualidade e o reconhecimento do próprio corpo. Ela atenta para o fato de que meninos também deveriam receber informação sobre período menstrual. "Para desmistificar e diminuir o impacto negativo em torno do assunto", explica.
Precisamos fala de educação sexual
"O processo de menstruar é completamente natural, mas o silenciamos", reflete Taciana Fortunati, que atua como terapeuta menstrual para atendimento individuais ou em grupos que buscam entender e lidar melhor com ciclicidades femininas. A terapia propõe um olhar novo e é uma modalidade recente de conhecimento do corpo, procurada sobretudo por jovens mulheres, a partir dos 25 anos, segundo Taciana.
Mas se faz necessário um passo anterior, focado em crianças e adolescentes, o da educação em sexualidade. O tema é tratado de formas diversas ao redor do mundo. Em países mais liberais da Europa é algo ordinário e já incorporado aos currículos escolares a partir de 11 a 13 anos de idade, enquanto em países Islâmicos do Oriente é assunto proibido.
Nos Estados Unidos, embora as regras variem entre estados, a educação sexual é apoiada por 90% dos pais. Adicionalmente, em países mais desenvolvidos que abordam o assunto já na infância, os índices de gravidez precoce, abusos sexuais e infecções sexualmente transmissíveis são bem inferiores aos das nações que o tratam de forma mais conservadora.
"É importante enfatizar que educação em sexualidade não é ensinar alguém a fazer sexo, mas orientar sobre como lidar com o amadurecimento sexual e de seus órgãos. A menina vai menstruar, o menino terá polução noturna e tudo isso deveria ser visto de forma natural", explica Isabela Correia. No Brasil, desde 2007 os ministérios da Educação e da Saúde atuam em conjunto por meio do Programa Saúde na Escola para prevenção e promoção de saúde e orientações relacionadas ao uso de drogas e a sexualidade. Porém, é recorrente o registro (e avanço) de projetos de lei que visam proibir o assunto no ambiente escolar.
Mulheres que se tocam
A convicção de que sentir dor é algo que faz parte no ato sexual já acompanha a expectativa da primeira relação. "Quantas de nós não morremos de medo por causa do hímen, do sangramento?", diz Ana Gehring, fisioterapeuta pélvica, que comanda o popular perfil @vaginasemneura no Instagram. Uma das debatedoras do painel "Sexo, autonomia e escolhas: onde começa ou deveria começar a liberdade", ela citou essa entre as muitas neuras femininas quando sexo está em pauta. Contudo, alerta que dor pode significar apenas desconhecimento do corpo e dos desejos.
Outro ilustre desconhecido parece ser o orgasmo. De acordo com Mayumi Sato, que mediou a conversa e é diretora da Sexlog, maior rede brasileira de sexo e swing, três em cada dez mulheres nunca experimentou a sensação, considerada o ápice do prazer em uma relação sexual. O dado provavelmente reflete a evolução dos preconceitos que já vem lá de trás, com a menarca. A vergonha do absorvente avança para o receio de explorar a própria anatomia íntima e saber quais pontos, estimulados, poderiam ajudar na obtenção do prazer.
Terapeuta, educadora sexual e diretora da Sociedade Brasileira de Estudos em Sexualidade Humana, Ana Canosa defende que a mulher só precisa ouvir o próprio corpo para se realizar: "Ela precisa se escutar e se posicionar. Sexualidade é um desenvolvimento que passa pelo que eu sinto e desejo e como comunicarei para minha parceria". Ana Gehring concorda: "Certamente quando você se conhece, está bem lubrificada e em companhia de uma boa parceria, não tem como não fluir legal".
Prazer com data de validade
Não falar sobre menstruação, não se tocar sozinha e estar fora do contexto erótico. Para completar a trinca que rege a ditadura sobre sexualidade feminina, está a perda do valor social da mulher com a chegada do envelhecimento e da menopausa. Traduzindo: mulheres maduras de certa forma perdem o direito de transar e gozar. Contrariando essa última convenção, a escritora Isabel Dias mergulhou em uma jornada de autoconhecimento e descoberta do prazer aos 60 anos. Na época, ela descobriu que era traída sistematicamente pelo marido, com que estava havia mais de três décadas.
"Era um tempo em que eu tinha certeza de que a mulher, quando menopausava, perdia o tesão e a vontade. Havia me casado com meu primeiro homem e o sexo era formal", lembra. Deprimida, se mudou do interior para São Paulo e, movida por questionamentos sobre seu valor como mulher, criou um perfil em uma rede social de encontros. E deixou clara suas intenções de fazer "amigos ficantes".
"Fui me descobrir e conhecer meu corpo. Ganhei um vibrador, pesquisei muito e percebi um mundo muito maior do que eu conhecia", conta ela, que ganhou também um Kama Sutra da mesma amiga que a presenteou com o brinquedo erótico, com dedicatória: "Você não está morta!"
Os maiores receios não estavam relacionados aos desejos, mas pelo corpo envelhecido. "Se o peito não está durinho e o bumbum está caído, a mulher vai se cobrindo. Tudo isso mexeu muito comigo. Por outro lado, sabia que se havia algo que podia me dar prazer, era o meu corpo", conta. A primeira relação sexual após o fim do casamento foi com um homem mais novo, que quis acender a luz durante o ato. "Pensei que ele iria embora e no final foi a mesma coisa, com meu corpo imperfeito tudo fluiu bem. Foi o que faltava para eu mesma dizer: acende a luz, que é assim que eu quero!"
Perfume de mulher
Em 2016, a instituição britânica Eve Appeal convidou mil mulheres a identificar detalhes de suas anatomias a partir de uma ilustração. O teste apontou que 44% delas não conseguiu identificar a vagina e 60% não perceberam a vulva. Durante o painel "A era do autocuidado íntimo: um papo sobre autoconhecimento e minimalismo", a ginecologista e obstetra especializada em saúde integral da mulher, Andrea Menezes, destacou que a preocupação com a juventude e outros padrões estéticos estão relacionados principalmente a meios que pregam estes modelos como a indústria pornográfica.
Há, por exemplo, imensa preocupação por parte das mulheres em estar depiladas (muitas vezes completamente sem pelos), sem odores vaginais e até pela aparência de suas vulvas. "Muitas chegam dizendo que essa parte da genitália é horrível. Então começo perguntando de onde vem a comparação. Pois não existe vulva padrão!", explica. Ela alerta ainda para hábitos como ducha e outras lavagens invasivas com química, que podem prejudicar a flora vaginal e eliminar a proteção natural da pele da região. "Mesmo os sabões com PH próximo não devem se usados em demasia. Cada uma tem seu cheiro e é normal."
Inversamente proporcional é o interesse em conhecer a musculatura íntima. Laura Della Negra, fisioterapeuta especializada em assoalho pélvico, conta que muitas vezes mulheres são orientadas a usar a musculatura para agradar o homem. "Contrair a vagina, por exemplo, não necessariamente trará prazer para ela, pois a rigidez causa a diminuição de fluxo sanguíneo", afirma. Ela alerta também que dores na pelve e na relação sexual podem estar associadas à tensão da musculatura.
Não é normal se sentir mal
Mulheres enfrentam cólicas, a dor do parto e outros desconfortos "exclusivos" da condição feminina. No entanto, se sentir mal ou incapacitada por dores frequentes não deveria ser normal. O problema é que ao serem silenciadas e constrangidas sobre aspectos naturais de sua saúde e sexualidade, elas acabam por não identificar anormalidades. Entre as enfermidades que atingem muitas e demoram a ser percebidas como atípicas está o sangramento uterino anormal (SUA), caracterizado por fluxo menstrual excessivo e muitas vezes acompanhado de cólicas incapacitantes, que podem levar até a internações.
A estimativa é de que uma em cada três mulheres sofra com SUA. Por isso, desde 2019 a Bayer promove a conscientização e acolhimento daquelas que podem ainda estar sem diagnóstico ou tratamento específico.
Gerente de saúde feminina da companhia, a médica Thais Ushikusa elenca quais os parâmetros de normalidade para avaliar a menstruação. "O ciclo costuma durar de três a oito dias e pode acontecer em intervalos de 21 e 38 dias. Se a pessoa passar mais tempo sangrando ou em demasia, há algo errado", afirma. Ela conta ainda que as pacientes levam em média até três anos para procurar tratamento, seja por desconhecimento, vergonha ou por não priorizar os cuidados com sua saúde.
Co-criadoras do movimento SUA Não é Normal, Viviane Duarte (CEO do Plano de Menina) e Bruna Rocha (vice-presidente da ONG Crônicos do Dia a dia) deixam um alerta: "Mulheres são mães, acumulam papéis, estão sempre correndo. Mas em algum momento precisam parar e olhar para seus corpos", diz Viviane. "Não dá para negociar com a saúde. E nós, como mulheres em uma posição de privilégio de informação, temos que praticar a escuta e o diálogo para alertar quem não tem o mesmo acesso", lembra Bruna. "Não é normal sentir dor, assim como não pode ser normal continuarmos a ter vergonha de falar do nosso corpo", finaliza.
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