Muçulmanas brasileiras usam Instagram para enfrentar intolerância religiosa
"Por que reduzir o número de hijabs no armário?", "Como lidar com a menstruação no Islã?", "Quem pode te ver sem o véu?". Essas são algumas das perguntas respondidas no Entre Irmãs, perfil do Instagram criado por mulheres muçulmanas para falar sobre estilo de vida e comportamento a partir da perspectiva islâmica. A iniciativa tem o objetivo de impulsionar o autoconhecimento e transformar os estereótipos que as cercam.
Entre os conteúdos publicados na página estão dicas de roupas e alimentação, além de hábitos, rotinas e relatos de como muçulmanas se incorporam à comunidade islâmica mesmo vivendo no Brasil. "Existe uma estrutura que tenta apagar os conhecimentos da nossa cultura para que a sociedade brasileira tenha um olhar mais eurocêntrico da gente. Está na hora de pararem de falar sobre nós e nos deixarem falar", diz Pamela Abdul, uma das idealizadoras do projeto.
Pamela se converteu ao islamismo há quase dez anos, depois de se casar com um muçulmano brasileiro. Segundo ela, o marido não interferiu diretamente em sua crença. "Ele não falava muito da religião comigo, mas tive curiosidade e comecei a pesquisar. Sempre fui muito religiosa", explica. Ela se aprofundou nos estudos, adotou os costumes e passou a seguir as doutrinas. Logo, precisou também começar a lidar com o preconceito.
"Estava sendo cotada para ser gerente na loja em que eu trabalhava. O salário era em torno de R$ 6.000, mas fui demitida por conta do meu hijab", diz. "A maioria das mulheres muçulmanas no Brasil enfrenta dificuldades no mercado de trabalho. Constitucionalmente, é o nosso direito [seguir a religião], mas acabamos sendo discriminadas por isso", justifica. Pamela conta que, impulsionada por essa demissão, decidiu apostar no empreendedorismo.
Com o dinheiro da rescisão, abriu, com o marido, uma pequena loja de produtos importados, que hoje não existe mais. Depois disso, se voltou para o nicho de projetos sustentáveis. Atualmente, presta consultoria para a criação de ecovilas para muçulmanos em países não muçulmanos e está desenvolvendo um site de vendas de produtos sustentáveis, livros e cursos que abordem o estilo de vida halal (comportamentos, alimentos, roupas e afins que sigam os preceitos da religião) de forma consciente e ecológica.
Por conta do trabalho do marido, o casal saiu do Brasil há alguns anos. "Nos tornamos meio nômades", brinca. Apesar de estar longe fisicamente da comunidade brasileira, no entanto, Pamela diz que sempre fez questão de manter contato com as muçulmanas do país. E foi ao lado de algumas delas que surgiu a iniciativa.
"O Entre Irmãs é uma página colaborativa para desmitificar o que a mídia diz sobre nós. Estamos compartilhando os nossos conhecimentos, pois, por muito tempo, nos ignoramos para dar atenção aos não muçulmanos", diz.
A ideia é que o perfil na rede social seja só o começo de um projeto de jornalismo feito do ponto de vista de mulheres muçulmanas. "Nos dirigimos especialmente a mulheres porque nossas questões são muito parecidas, principalmente por causa da religião. Porém, apesar de sermos vistas como iguais, não somos. Somos singulares e bem diferentes. Uma irmã é atleta, outra bibliotecária, outra veterinária. Nós somos mulheres, antes de tudo. E somos brasileiras. Queremos trazer esse olhar."
"Perguntam se eu não sou de lá, sem explicar o que lá significa"
Mariam Chami contabiliza mais de 200 mil seguidores no Instagram e estampa em sua descrição a palavra "brasileira" em caixa alta e o complemento "que não precisa voltar para o seu país, pois já está nele". Filha de um pai libanês muçulmano e de uma mãe brasileira, a jovem de 29 anos diz que escuta questionamentos preconceituosos e xenófobicos todos os dias.
"Perguntam se eu não sou de lá, mesmo sem explicarem o que 'lá' significa. Me mandam voltar para o meu país e até já me disseram que estou aqui infiltrada", lista a brasileira. Ela usa a rede social justamente para tentar quebrar esses preconceitos e trazer uma nova perspectiva. "A religião é muito deturpada pelas pessoas. Pegam frases fora de contexto e repetem uma mentira várias vezes até que se torne verdade", afirma.
Quem assiste aos vídeos engraçados com filtros de TikTok que Mariam usa para criticar os estereótipos ligados ao islamismo no Brasil nem imagina que a jovem começou a produzir esse tipo de conteúdo por acaso. "Tinha um grupo de amigas que não conhecia a religião e eu queria mostrar para elas. Depois, vi que estava chegando a outras pessoas", diz. "Ainda não tenho noção do tanto de gente que vê os meus stories".
Segundo Mariam, o retorno tem sido incrível. "A maioria das minhas seguidoras tinha uma visão negativa [do islamismo] e agora contornou isso", celebra. "Não tenho a intenção de converter ninguém para a minha religião. Só quero desmistificá-la e trazer um novo viés. A minha parte é mostrar. E isso não muda nada se as pessoas não querem me ouvir e entender."
Entre os temas que aborda estão os estereótipos que envolvem a comunidade no Brasil, dúvidas sobre o uso do hijab em situações costumeiras, perguntas sobre casamento muçulmano e, mais recentemente, sobre a experiência de ser mãe pela primeira vez. "Ninguém é obrigado a saber tudo sobre a religião do outro. Eu mesma não sei sobre todas as outras e não sou obrigada a saber, mas sou obrigada a respeitar", diz.
"Nudez não tem a ver com liberdade, e hijab não tem a ver com opressão"
No entanto, tem um tema que incomoda Mariam um pouco mais: a liberdade da mulher muçulmana. "Nudez não tem nada a ver com liberdade, e hijab não tem nada a ver com opressão. Quantas mulheres podem estar peladas e, ainda assim, continuar sendo oprimidas pelo padrão de beleza da sociedade, pelo marido, pela família, pelo trabalho e pelos seus chefes? O Ocidente acha que liberdade é estar pelada. Só que não. Liberdade é ter escolha: é poder escolher estar nua ou coberta", diz.
"As pessoas acham que só falo isso porque estou no Brasil, mas a religião é a mesma no mundo inteiro. A diferença é que cada país e cada sociedade tem uma cultura. Às vezes, essa cultura pode te oprimir ou libertar, mas não é culpa da religião e, sim, do mau uso que fazem dela", afirma. Graduada em nutrição, Mariam comenta que sente esse preconceito na pele.
Ela conta que já foi chamada para várias entrevistas de emprego, mas o interesse dos contratantes desabava quando ela aparecia de hijab. "É como se a nossa vestimenta e a nossa fé fossem mudar a inteligência e a competência na profissão", lamenta. E comenta que algumas mulheres muçulmanas precisam tirar os lenços para poderem trabalhar.
"Precisam abdicar da sua fé para conseguir seu sustento." Ela diz que, se tivesse recebido uma oportunidade na própria área, talvez não tivesse enveredado pelo caminho do empreendedorismo, seguindo a jornada dos familiares, donos de restaurante. "Desisti da nutrição porque me frustrei muito. Me tornar empresária foi um caminho natural", diz. "No fim, a gente só quer que nossas escolhas sejam respeitadas. Não queremos impor nada pra ninguém. Queremos ter o direito de ir e vir."
Muçulmana e feminista
De acordo com o Censo, em 2010, cerca de 35 mil brasileiros eram muçulmanos. Hoje, segundo organizações islâmicas, o número chega a aproximadamente 1,5 milhão de pessoas. "Quando me converti ao Islã, há oito anos, o cenário era muito diferente", diz a professora Fabiola Oliveira. "Ainda tem gente não muçulmana, que nunca estudou nada sobre a religião, querendo nos silenciar. Mas é um grupo que está diminuindo. Hoje, as pessoas se informam mais e não aceitam essa segregação e intolerância. Pelo contrário, muita gente até me agradece por mostrar este outro lado."
Fabiola se descreve no Instagram como "feminista, ativista e mãe de dois meninos na criação antirracista e antimachista". Ela defende que é importante que mulheres feministas estejam em todos os lugares. "As pessoas me questionam 'como posso ser muçulmana e feminista'. Mas, para ser feminista, basta ser mulher, se considerar mulher. O machismo existe no mundo inteiro."
"O sistema patriarcal da Arábia Saudita atua de uma forma. Aqui, no Brasil, a gente tem a cultura do estupro e é um dos países mais violentos para as mulheres. Em outros lugares, será de outra forma", explica. "É importante descolonizar esse olhar. O feminismo não é branco e laico. Ele pode estar em todos os lugares. Existe o feminismo negro, o feminismo islâmico, o feminismo decolonial."
Ela conheceu a religião quando fez um intercâmbio na Nova Zelândia e entrou em contato com jovens de outros países, justamente no mês do Ramadã, um dos períodos mais importantes do ano para o islamismo. "Comecei a estudar e, quatro anos depois, me converti", conta. Pouco depois, passou a utilizar as redes sociais para apresentar tudo aquilo que aprendeu.
"Existem dezenas de países majoritariamente muçulmanos e eles são diferentes entre si. No Ocidente, se propaga que o árabe é bárbaro, cruel, exótico ou místico. Ao mesmo tempo em que existe uma sexualização do corpo da mulher muçulmana", acredita. "Por isso, apesar de ser um ato de fé, ser muçulmana no Brasil se torna um ato político a partir do momento que eu saio na rua."
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