"Como Raissa, tenho borderline e perdi o controle em público muitas vezes"
"Todas as vezes em que que assisto à participante Raissa, de 'A Fazenda' brigar, se exaltar e quebrar as coisas dentro do confinamento, fico triste por ela e relembro meu próprio passado. Sei que o nome de Raissa vem sendo associado ao Transtorno de Personalidade Borderline e eu, que recebi esse mesmo diagnóstico de um psiquiatra em agosto deste ano, imagino o quanto deve ser difícil ter episódios de raiva monitorados por câmeras e transmitidos ao vivo para todo o Brasil.
Como ela, perdi a conta de quantas vezes me descontrolei com frustrações cotidianas, que começaram na infância. Costumava ouvir dos meus pais que 'ainda seria muito prejudicada por causa do meu temperamento'. Conforme fui crescendo, as coisas realmente pioraram. Sinto vergonha de admitir o que já cheguei a fazer por ciúmes, pelo medo do abandono. Quebrei coisas na casa de um ex-namorado, armei discussões horríveis em bares e espaços públicos, tudo por motivos irrelevantes. Minhas reações costumavam ser tão intensas que, em 2008, sofri um aborto logo depois de uma briga no meu local de trabalho.
Naquela época, estava com 41 anos, em um relacionamento sério e no início da minha primeira gravidez. Ser mãe era um sonho e estava feliz por ter conseguido engravidar naturalmente com aquela idade. Havia feito os primeiros exames do pré-natal e, até aquele momento, tudo caminhava bem comigo e com o feto. As coisas mudaram após uma das minhas crises. Eu, que sou funcionária pública, me senti ofendida ao realizar um atendimento no órgão em que trabalho. A pessoa em questão deu a entender que eu estava sendo desonesta no cumprimento dos meus deveres. Imediatamente, começamos a brigar. Fiquei cega de raiva e passei uns 20 minutos gritando com ela na minha mesa.
Quando o bate-boca acabou, ainda estava muito abalada. Peguei o celular e passei mais meia hora desabafando, aos berros, com um amigo. Era uma sexta-feira e, assim que voltei para casa, à noite, comecei a sentir dores abdominais intensas e a ter sangramentos. Moro em Cananéia, no litoral de São Paulo, que tem apenas 13 mil habitantes e pouca infraestrutura de saúde. Preferi aguardar até segunda-feira para ir à ginecologista que estava acompanhando minha gravidez. Passei o final de semana naquela agonia. Quando cheguei ao consultório, ela confirmou minhas suspeitas sobre o aborto. Hoje, quando reflito sobre a história, tenho certeza de que o estado de nervos em que fiquei foi determinante para a perda.
Por sorte, alguns meses depois engravidei novamente, dessa vez sem complicações. Porém, sem tratamento adequado, meus problemas psiquiátricos continuaram. Um dos episódios mais marcantes aconteceu no ano passado, quando um ciclone passou pela minha cidade e levei meu filho, que estava com dez anos, até a porta da escola, para saber se haveria aula ou não.
Lá, me desentendi com uma professora, que se sentiu ofendida pelo meu tom de voz e registrou um boletim de ocorrência contra mim. A história não seguiu adiante na Justiça, mas foi uma situação de muito estresse e desgaste. Pela minha experiência, depois de vivenciar algo do tipo, pessoas com o transtorno têm um único desejo: voltar no tempo e mudar o rumo da cena, dar as costas e fazer como qualquer um faria. Mas, já que isso não é possível, desejamos pelo menos apagar da cabeça dos demais a ideia de que somos descontrolados ou histéricos.
Hoje, faço terapia, acompanhamento com um psiquiatra e tomo medicações que ajudam a estabilizar meu humor. A diferença é gritante: há alguns dias, uma vizinha veio reclamar que meu cachorro estava incomodando os gatos dela. Essa seria a típica situação na qual eu interpretaria a realidade de forma exagerada e estouraria, mas consegui resolver o problema naturalmente. Penso no tanto de situações constrangedoras que poderiam ter sido evitadas se tivesse começado a me tratar mais cedo. Ao contrário do que meus pais me diziam na infância, o problema não é só temperamental. Ele é também biológico, químico e, por isso, precisa ser tratado com remédios. Ninguém precisa sentir os efeitos do transtorno, achar que 'é assim mesmo' e continuar em sofrimento."
Adriana Fernandez, 54 anos, funcionária pública
Entenda o Transtorno de Personalidade Borderline
O transtorno vem chamando a atenção do público graças à participação de Raissa Barbosa na décima segunda edição de 'A Fazenda'. Cenas da modelo gritando, xingando e se descontrolando no convívio diário com os demais colegas de reality a tornaram uma das competidoras mais comentadas do programa. Em abril deste ano, Raissa usou o Instagram pela primeira vez para contar ao público que foi diagnosticada com o transtorno e, na ocasião, usou também os stories conversar com seus seguidores sobre o assunto.
- O que é
A psiquiatra Luisa Polonio explica: "Mais do que uma doença, é uma forma de viver e de se relacionar", diz. O transtorno borderline se caracteriza por instabilidade emocional, impulsividade acentuada e intensidade das emoções como um padrão constante de vida.
- Sintomas
"A pessoa se esforça desesperadamente para evitar um abandono, que pode ser real ou imaginário. Costuma ter relacionamentos instáveis em que [o portador do transtorno] alterna entre a idealização e a desvalorização da outra pessoa. Tudo é visto pela lente do oito ou 80", explica. A médica aponta que a autoimagem também tende a ficar distorcida: em alguns momentos a pessoa se sente "boa demais", em outros, fica com a autoestima baixa.
Ainda podem estar presentes atitudes imprudentes em áreas que podem trazer prejuízos para o dia a dia, tais como sexo, alimentação e direção. Ou seja, a pessoa pode decidir impulsivamente se relacionar com alguém sem uso de preservativo, ter episódios de compulsão alimentar ou dirigir de forma imprudente. Por fim, é possível que a pessoa tenha pensamentos ou gestos suicidas, que pratique automutilação, que tenha mudanças rápidas de humor, um sentimento persistente de vazio, raiva intensa ou pensamentos paranoicos temporários, desencadeados pelo estresse.
- Diagnóstico
Luisa reforça que o diagnóstico só pode ser realizado por psiquiatras e que o paciente em questão deve ser maior de 18 anos, embora alguns dos sintomas possam se apresentar antes desta idade. "A maioria dos pacientes diagnosticados são mulheres, mas é preciso lembrar que essa também é a parcela da população que mais busca ajuda. Por esse motivo, alguns estudos indicam que a incidência [do transtorno] pode ser semelhante entre os gêneros", diz.
- Tratamento
As crises normalmente são desencadeadas por frustrações, como términos de relacionamentos, lutos e desentendimentos cotidianos. "Por isso, é importante que o tratamento envolva psicoterapia, já que esta é a única forma de flexibilizar os padrões de comportamento. No entanto, também devem sempre ser utilizadas medicações", informa. Apesar de não existir cura para o borderline, a tendência é que o tratamento torne os relacionamentos mais estáveis, deixe a pessoa mais tolerante à frustração e aumente sua capacidade de refletir e controlar impulsos, aumentando a qualidade de vida.
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