"Procurei meu filho por 15 anos; quando o achei, me vi travesti, pai e avó"
"Entre a infância e a adolescência eu fui me tornando cada vez mais aviadada, uma criança trans mesmo. Anos depois, eu fui colocada para fora de casa, como a maioria das pessoas trans no Brasil. Eu cresci na Igreja Católica, fui batizada, fiz catequese, crisma. Aos 15 anos, eu tinha alguns amigos de infância que frequentavam a igreja evangélica e decidi ir junto com eles, mesmo já me começando a me apresentar como Sara. Foi na Assembleia de Deus que eu conheci a mãe do meu filho.
Numa tentativa de fazer o que era imposto, eu pensei 'quem sabe se eu ficar com uma mulher eu viro homem? Vai que eu gosto'. Decidi experimentar, mas eu me machuquei muito, porque aquela foi uma relação forçada, não tinha nada a ver comigo. Nós tivemos uma única relação sexual, e ela engravidou.
Quando contamos ao pastor que ela estava grávida, ele não fez o que geralmente fazia. Naquela época e naquela igreja, se o pastor descobre que João transou com Maria e Maria está grávida, ele coloca os dois para casar o quanto antes. Ele fez diferente: me expulsou da igreja dizendo que eu era o demônio. Eu já era trans, já era Sara. E para ele devia ser muito confuso perceber que mesmo depois de ter relações com uma mulher, eu continuava sendo Sara.
Eu fui a primeira pessoa a ver o bebê quando ele nasceu. Na maternidade, eu via os homens chegando e as enfermeiras se referindo a eles como "pais do Fulano", comigo não tinha esse approach, várias vezes não me deixavam entrar mesmo depois que eu me identificava. Como se fosse uma aberração eu ser pai de uma criança.
Eu participei da vida do meu filho até ele ter 4 ou 5 anos. Ele cresceu perto de mim até que um belo dia a mãe dele sumiu no mundo levando a criança. Eu pirei da cabeça, passei 15 anos procurando meu filho, frequentei todo tipo de templo religioso que eu conhecia para tentar encontrar alguma resposta.
Quando eu falava dessa dor, desse sumiço do meu filho, ninguém dizia 'vamos até a polícia, vamos denunciar'. As pessoas diziam 'vai ver queele é mais feliz agora, vai ver que ele tem um pai que seja bom'. Por que eu não poderia ser um bom pai para ele?
Trabalhava como um cavalo e gastava o dinheiro viajando para procurar meu filho, sem ideia de onde ele estava.
Foram 15 anos de buscas, até que um dia decidi matar esse filho dentro de mim, eu não aguentava mais essa aflição. Ninguém perguntava mesmo, afinal de contas travesti não tem filho. Guardei comigo, com uma história da minha vida. E segui em frente.
Em 2012, meu filho me achou nas redes sociais. Eu estava morando em Londres, trabalhando como cabeleireira no Soho, atendendo artistas internacionais. Meu ápice foi ter feito cabelo e maquiagem da Elza Soares [quando a cantora recebeu o prêmio Artista do Milênio, da BBC].
Eu estava no salão, com o Facebook aberto, e uma menina me mandou mensagem: 'Liga no Brasil urgente", com um número de celular. Achei estranho e não liguei. Eu não tinha parentes nem amigos próximos no Brasil, mas aquilo ficou na minha cabeça. Duas semanas depois, peguei o telefone e liguei.
Quando a pessoa atendeu, eu disse: 'Aqui é a Sara, de Londres'. E ela respondeu: 'Espera um minutinho, tem uma pessoa querendo falar'. Veio outra pessoa, voz de homem, e disse: 'Oi pai, que saudade de você'. Eu quase morri. Era meu filho. Ele disse: 'Lembro até hoje do seu cheiro'.
Passamos um ano nos falando a distância, e em 2013 eu voltei para o Brasil para ficar perto dele. Meu filho mora em Goiânia, eu sou professora de crianças, concursada em São Pedro da Aldeia [cidade de 100 mil habitantes no interior do Rio de Janeiro; Sara prestou uma série de concursos públicos e se mudou para a primeira cidade em que foi chamada. Ela vive na cidade até hoje, é mestranda em Educação e professora universitária].
Uma semana depois de chegar ao Brasil, nos encontramos. Fui até o Aeroporto do Galeão [no Rio] para recebê-lo. Quando ele desceu do avião, fui correndo para abraçá-lo, e esses foram os 20 segundos mais poderosos da minha vida. Finalmente abraçar meu filho, mais de 15 anos depois, e sentir o coração dele batendo perto do meu.
Eu chorava compulsivamente dentro daquele abraço. Dois homens que estavam perto e disseram: 'Olha o que o diabo está fazendo com esse mundo', algo assim, se referindo a nós dois como viados. Naquela hora eu pensei: 'Nunca vou ter paz com ele'. Meu maior medo é que meu filho seja constrangido de novo por estar comigo.
Nós nos visitamos com frequência. Sempre que eu posso, pego um avião e vou vê-los. Eu tenho um neto, de 5 anos. Ele é uma criança livre no sentido de poder rebolar igual à Luísa Sonza na frente da televisão e o avô, pai da minha nora, que é quem cria ele, não falar que ele vai virar um viadinho [o filho e a nora de Sara não vivem juntos e a criança vive com a família da mãe, em Goiânia].
O meu filho, por outro lado, tem a cabeça dentro da Assembleia de Deus. Ele foi roubado de mim, registrado em nome de outro pai. Me procurou, mas esses dias me disse que acha que a mãe dele fez certo em levá-lo para longe de mim.
Eu quis morrer, é cortante ouvir isso. Às vezes ele se refere a mim como homem. Outro dia disse que não via a hora de ir à academia comigo, 'pai e filho, dois homens', e eu respondi: 'Você está viajando'.
Eu falo para ele: 'Meu filho, entenda que o fato de eu ser seu pai não me torna um homem'. Apesar disso, temos uma boa relação.
Eu me apresento como travesti, e não como uma mulher trans, por ser uma identidade política no Brasil. Até porque, do meu RG, consta o nome Sara Wagner York, mas o gênero é masculino, porque o juiz não quis alterar, lá em 2014. E não pedi mais para mudar como forma de denúncia.
Então me apresento como travesti, pai e avó. São os recortes geracionais. Quando eu tive meu filho, me compreendi como pai, mas hoje eu me compreendo como mulher, como avó.
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