Sem Volta: Documentário retrata luto de mulheres por tragédias da mineração
Quem são as mulheres que lutam para recomeçar depois de perdas causadas por rompimentos de barragens em Minas Gerais? Este é o foco principal do documentário "Sem Volta", dirigido pela fotógrafa documental Patrícia Monteiro, 31. Lançado em parceria com Universa e MOV.doc, o selo de documentários do UOL, o filme estreia nesta quinta (5), data que marca os cinco anos da tragédia de Mariana.
Entre planos estáticos e uma trilha sonora sensível, Patrícia retrata as casas, as fotografias, a vida e o luto de mães, filhas e viúvas que viram seus planos desmoronarem após os desastres de Itabirito (1986), Mariana (2015) e Brumadinho (2019).
O rompimento da barragem de rejeitos da mina de Fernandinho, em Itabirito, deixou sete mortos. E, no município de Mariana, a barragem de rejeitos de Fundão, da mineradora Samarco, também cedeu, resultando em 19 mortes e em um dano ambiental imensurável para a região. Mas a maior tragédia relacionada à mineração no país ocorreu no ano passado, em Brumadinho, na região metropolitana de Belo Horizonte. Uma das barragens da mineradora Vale se rompeu em uma onda de lama que matou ao menos 270 pessoas.
Em entrevista, a diretora relata os principais objetivos e desafios do projeto e as motivações crescentes que a levaram a realizá-lo.
UNIVERSA - Como surgiu a ideia de fazer esse documentário e de colocar em foco as mulheres em luto por conta do rompimento das barragens?
Patrícia - Essa foi a primeira vez que fiz um documentário autoral. Fui para Brumadinho com colegas em busca de desenvolver uma reportagem sobre viúvas da região e passei dez dias por lá, duas semanas depois do desabamento.
Como já tinha interesse em fazer um documentário, achei que esse era um ótimo tema para me aprofundar, porque é o tipo de assunto em que existe um assédio da imprensa gigantesco quando acontece, mas que, de repente, todo mundo vai embora, e não se fala mais sobre o assunto. A ideia era aprofundar um pouco mais as histórias e não deixar que elas morressem.
Voltei sozinha para a região em abril do ano passado, encontrei as mesmas mulheres e também procurei outras. Como estava querendo aprofundar o tema e trabalhando com vídeo, achei que também valia a pena ir para Mariana.
Durante minhas pesquisas e minha passagem pela cidade, descobri o desabamento de Itabirito, que ocorreu em 1986. Decidi ir à cidade de última hora, meio sem planejamento, mas deu muito certo porque, em Minas Gerais, as pessoas são muito receptivas.
Foi um processo muito orgânico de ir entendendo que as histórias são muito mais longas do que imaginamos e que todo mundo na região lida com o fato de que ocorrem acidentes relacionados à mineração todos os dias. Só que não se fala sobre isso.
Como conheceu essas mulheres? Como foi entrevistá-las sobre um assunto tão dolorido?
Foi muito difícil para mim, sou muito tímida e as pessoas estavam em processo de luto, por isso fiquei bastante tempo na região. Foi uma busca bem cansativa, por conta de ter essa delicadeza para se aproximar, conseguir falar com as pessoas e dar espaço para elas.
Havia algumas estações da Vale, onde quem tinha perdido alguém precisava ir por conta de questões burocráticas. Fui a esses lugares em busca de entrevistadas e teve vezes em que chorei bastante. Conversava com as mulheres e algumas delas me indicavam amigas. No Córrego do Feijão, em Brumadinho, foi um pouco mais fácil porque era uma região bem pequena. Já as viúvas de Mariana, conheci na casa de uma das entrevistadas de Brumadinho, por meio de uma advogada que estava cuidando dos casos.
Uma das cenas mais fortes e simbólicas do documentário ocorre durante o relato de Ketre Daliane, em que ela mostra o vestido de noiva que usaria no dia de seu casamento com o ex-noivo, Djener Paulo. Qual a importância de inserir no filme a realidade de planos interrompidos?
Ketre tem uma idade muito parecida com a minha, então a sensação que tive foi a de que a história dela poderia ter acontecido comigo. É importante ter isso no documentário, apresentar entrevistadas de várias idades, porque essas histórias podem acontecer com todo mundo. E eu queria que as pessoas tivessem a sensação de que elas podem acontecer de novo.
A Ketre queria muito contar a história dela naquele momento, ela estava com muita raiva da Vale e queria liberar isso. Quando pedi para ver o vestido de noiva, ela me mostrou com muita tranquilidade.
Você se emocionou em algum momento durante o processo?
Eu chorei, sim, mas não nas entrevistas. Porque era muito bom estar com essas mulheres, era um momento de conversa, de olhar no olho. Mas eu de fato chorei no processo porque acabei indo ao velório de Rodrigo Henrique de Oliveira, filho da dona Maria das Dores, a primeira entrevistada que aparece no documentário. Ela estava na busca por ele há um bom tempo. E, em um dia em que estávamos indo almoçar na casa dela, nos deparamos com uma multidão, porque finalmente tinham encontrado o corpo dele e naquele dia seria o velório.
O que une todas as entrevistadas do documentário é essa questão da perda. Além disso, o que mais elas têm em comum?
Todas elas são unidas pelo fato de serem mulheres. E a gente ainda tem uma cultura muito machista. Algumas não trabalhavam até então e seguiam a rotina do homem provedor. Mas, no fim, são as mulheres que ficam, são elas quem aguentam o baque. Elas precisam ser muito fortes, têm filhos pra criar, uma vida para continuar e precisam superar o trauma.
Uma delas, a Jaqueline Dutra, tinha um filho com uma deficiência, então ela nem conseguiu viver o processo do luto porque tinha que cuidar dele e seguir a vida. Infelizmente, algum tempo depois, ele também morreu.
O que une essas mulheres também é a força de seguir em frente. As pessoas não olham muito para essas histórias, acham que é algo muito distante porque não temos essa cultura da mineração, não entendemos como é normalizado as pessoas trabalharem com isso e correrem tanto risco.
O documentário também aborda o estigma de ser viúva, por meio do depoimento da Ana Paula Assis. Apesar de já estarmos em 2020, essa realidade ainda não mudou. De alguma forma, todas passam por isso, não é?
Parece que as mulheres sempre vão estar fazendo alguma coisa errada. Ou superam rápido demais, ou não superaram ainda e estão empacadas. As pessoas sempre dão um jeito de julgá-las, independentemente do que façam. Quando é um homem na mesma situação, tendem a normalizar o que aconteceu.
A Ana Paula, por exemplo, abriu um restaurante, que era o sonho dela e do marido, atende muitos homens, funcionários da Vale, mas disse que não ia ficar parada ouvindo julgamentos porque precisava seguir em frente.
Quais foram os maiores desafios que você encontrou para concluir o projeto e que desfecho enxerga para essas mulheres?
Como fotógrafa, o processo de edição foi muito difícil. Era preciso ter sensibilidade para mostrar o drama da situação, sem explorar o sentimento das pessoas. Teve várias vezes em que eu editei e tirei toda a emoção do filme, tirava todas as partes de choro, porque tinha medo de explorar isso de uma forma negativa. Mas, aí, fui entendendo que essas partes poderiam, sim, estar presentes, junto com a trilha sonora, para dar realmente o mérito que o tema precisa.
Eu sigo tendo contato com a maioria das mulheres. Tem uma coisa que a Rose Barbosa fala no começo do filme, que é essa questão da vida seguir e de elas terem muita coisa pela frente, mas, ao mesmo tempo, muitos processos continuam inacabados. Sei que elas são muito fortes, continuam trabalhando, seguindo em frente e construindo seus projetos.
Sobre as tragédias
Nenhum dos responsáveis pelo desabamento da barragem de Fundão em Mariana foi preso até o momento, e a mineradora Samarco (controlada pela Vale S.A.) ainda não terminou de pagar as indenizações devidas.
Em Brumadinho, 11 pessoas estão desaparecidas e as denúncias do Ministério Público contra a Vale S.A. e a TÜV Süd, responsáveis pela tragédia, ainda correm na Justiça.
Em 2020, das 364 barragens existentes no estado de Minas Gerais, 221 encontram-se em risco, segundo dados da Agência Nacional de Mineração (ANM).
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