Jogadoras de xadrez contam o que é real ou fake em "O Gambito da Rainha"
A minissérie da Netflix "O Gambito da Rainha", lançada em 23 de outubro, está entre as cinco produções mais assistidas da plataforma no Brasil, virou uma sensação fora e dentro da comunidade enxadrística. No agregador de críticas de cinema e televisão Rotten Tomatoes, por exemplo, a série atingiu o feito raro de conseguir 100% de aprovação.
Baseada no livro homônimo de 1983 escrito por Walter Tevis, a série acompanha a vida de Beth Harmon (Anya Taylor-Joy) uma órfã que aprende a jogar xadrez com o zelador do orfanato e se mostra um prodígio. A produção da Netflix também retrata as dificuldades de uma mulher no universo do xadrez durante anos 50 e 60. Mas o que é real e o que é só ficção na trama? Universa conversou com enxadristas brasileiras e pediu a opinião delas sobre a produção.
De maneira geral, a série tem muito mais elogios do que críticas dentro da comunidade enxadrista. Thauane Medeiros Medeiros, 26 anos, campeã brasileira de categorias e representante da equipe olímpica do Brasil gostou da série.
"Acho que prós e contras sempre terão, mas num geral achei positivo. Foi maravilhoso ter uma representante mulher e falar do nosso esporte que é pouco divulgado. Sempre será agradável para nós que queremos que o xadrez alcance cada vez mais pessoas, principalmente que entre em grade curricular de escolas."
Ambiente mais masculino, falta de incentivo e união: os acertos da série
Apesar de ser uma personagem fictícia, os jogadas que Beth aprende são reais; assim como são reais as dificuldades que uma mulher na época em que a trama se passa - e até hoje - pode enfrentar no ambiente quase predominantemente masculino do xadrez. Em alguns momentos do seriado, Harmon enfrenta dificuldades para pagar a entrada em torneios ou até uma viagem à Rússia. Esse empecilho para muitas jogadoras - que às vezes já são desmotivadas a competir pelo assédio e ambiente hostil - é presente, ainda mais se a mulher viajar sozinha e não tiver outras colegas para dividir despesas de hospedagem.
Bárbara Ribeiro Araújo, 38 anos, diretora da parte feminina da ALEX-RJ (Associação Leopoldinense de Xadrez), Campeã Brasiliense feminino no ano de 2000 e co-administradora do grupo online "Chess is Life", concorda: "Eu acho que é muito real essa parte de dificuldade de ir aos torneios. Alguns são muito caros e realmente eu não participaria por este motivo."
A falta de representatividade feminina também aparece na série. Beth, na maioria das vezes, é a única mulher competindo com os grandes enxadristas. "Até os anos 2000, encontrar duas mulheres em um torneio já era raro. Agora em 2019 nós tivemos um torneio [Duchamp in Rio] que tinha um monte de meninas. Eu acredito que estamos conseguindo ocupar melhor o espaço", afirma Bárbara, sobre a pequena quantidade de mulheres no esporte.
A vice-presidente de Comunicações da FEXERJ (Federação de Xadrez do Estado do Rio de Janeiro), Karina Abrahim, de 28 anos, diz que se identificou muito com a personagem: "Eu como mulher passei por várias situações que ela passou, do preconceito, dos namoros. Me senti muito representada por ela. A Beth não é julgada pelos homens com quem se envolve. E é muito mais comum ter relacionamentos dentro do esporte", reflete.
Para Michelle Brito, 18 anos, de Campo Bom (RS), a série acerta ao mostrar o trabalho em equipe, em vez de tratar o xadrez como um esporte muito individualista, que é retratado geralmente no audiovisual. "E passa a sensação dos torneios, o nervosismo, a preparação, ela escrevendo as etapas... Mostra uma parte importante que é quando a gente produz em equipe. É muito comum trocar ideias para encontrar soluções para alguma partida."
Além da amizade de Beth com os homens, ela se une às outras mulheres da trama. "A primeira adversária dela num campeonato ilustra a realidade do xadrez. Quando a gente não sabe alguma coisa, geralmente nós mulheres recorremos umas às outras como rede de apoio. Acho que essas personagens secundárias são tão importantes quanto a principal", comenta Michelle.
Raíssa Vieira, enxadrista amadora e economista de 23 anos, elogia: "A presença feminina é muito relevante. A série traz reflexões de feminismo e patriarcado que são bem interessantes e bem ilustrativas."
Algo muito comum que pode acontecer quando se é menina interessada em xadrez é a falta de incentivo dos familiares. "O Gambito da Rainha" mostra como a mãe adotiva de Beth não dava muito atenção para o hobby da filha à princípio. "A série traz várias críticas importantes, desde quando ela iniciou no esporte e quer comprar um tabuleiro, participar de torneios e não tem muito incentivo das pessoas que estão cuidando dela", diz Michelle. Continua: "Traz várias questões problemáticas do ambiente como a invalidação da comunidade, e são críticas para a gente refletir nosso papel no meio disso tudo".
Tradução do nome, jogar em pé e visão masculina: os erros
O nome da série gerou polêmica na comunidade enxadrista. "O Gambito da Rainha" na verdade teria que ser "O Gambito da Dama", devido ao nome da peça. Thauane foi uma das enxadristas que procurou a gigante do streaming para questionar o título. "Mandei vários e-mails e liguei. A parte do 'Queen's Gambit' não tem relação só porque é uma mulher que está jogando. É por isso que bati o pé para eles trocarem o título. Nem 100% das palavras em inglês que você tem que traduzir ao pé da letra. Em livros e até em outras línguas sempre será dama", comenta.
"'Queen's Gambit' é o nome de uma abertura, uma mescla de lances que a gente decora", ou seja, um conjunto de jogadas iniciais para guiar o plano da partida. Thauane explica que a personagem principal utiliza a estratégia "O Gambito da Dama" na competição decisiva para ganhar o jogo.
Segundo as enxadristas entrevistadas, há outros tropeços na série. Karina aponta, por exemplo, como nem sempre os personagens anotavam os lances durante as partidas: "Isso dá problema sério na vida real", alerta. "Também jogavam rápido demais, até pra dar uma dinâmica maior à série, mas é muito comum demorar um bom tempo para jogar. Cada lance deve ser calculado, avaliado com calma. Na partida dela no mundial, ela jogava rápido. Isso não é nada padrão."
Em uma das cenas, Beth joga de pé e Karina salienta que isto seria proibido. "Levantar é comum, você não precisa ficar sentado direto. Mas só pode levantar no tempo do adversário." E olhar fixamente para o colega enquanto joga, pode? "É muito deselegante encarar, e isso foi muito repetitivo na série. Não acontece na vida real. No xadrez seu adversário não é seu inimigo. É uma batalha de estratégias. Peça x peça. Quando se encara, parece algo pessoal", conclui.
A minissérie foi dirigida por Scott Frank, e de acordo com Raíssa, ainda tem um olhar masculino nas entrelinhas:
"Há a questão da nudez, acho que algumas personagens são poucos trabalhadas e dão a impressão de serem fúteis, como aquela modelo (Margaret), por exemplo."
Grande vantagem: a procura pelo xadrez aumentou
Uma das coisas legais que todas as entrevistadas concordam é que a série trouxe visibilidade ao esporte. "Nas lives de xadrez estamos vendo muita gente aparecer querendo aprender o esporte após assistir a série", conta Bárbara.
"A série é ótima por várias razões, e acho que a principal delas é aproximar a comunidade externa, galera que não é enxadrista e nunca pensou em jogar xadrez porque achou que o jogo era chato e maçante. Aproxima esse pessoal e faz com que o esporte cresça e seja praticado por mais pessoas", termina Michelle.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.