"Depois de sofrer em ensaios como modelo, abri uma agência para negros"
"Meu pai é negro e a minha mãe é filha de indígena e branco. Durante a infância, eu não brincava com outras crianças negras na escola. Cresci em Pinhais, município próximo a Curitiba. Lá não tinha muitas famílias pretas. Eu costumava andar com as minhas três irmãs e era muito quieta no colégio. Não entendia porque nenhum menino tinha interesse em mim e nas minhas irmãs quando éramos adolescentes.
Até na Igreja Congregação Cristã do Brasil, que a minha família frequentava, eu e as minhas irmãs éramos excluídas do grupo de jovens. Costumávamos escutar piadas sobre o volume do nosso cabelo.
Nessa igreja, as mulheres têm que usar um véu na cabeça. Em uma noite de culto, a minha irmã mais velha, a Ana Paula, estava com duas trancinhas. A pontinha do cabelo dela ficou para cima. E, por causa do volume do cabelo, o véu ergueu. Algumas meninas começaram a rir e perguntar por que o cabelo dela era daquele jeito. Ela só chorava.
A verdade é que ninguém considerava a nossa existência. Ninguém esperava nada da gente. É como se as pessoas negras fossem estatísticas: ou vai para as drogas ou vai se prostituir. Não pensavam nem que eu e as minhas irmãs iríamos terminar os estudos.
Mas deu tudo certo apesar das adversidades da vida. Sou muito próxima da minha mãe, do meu pai e das minhas irmãs. Às vezes, o dinheiro em casa não era suficiente. Então, eu e as minhas irmãs catávamos latinhas e panelas na rua. A gente juntava uns sacos e ia vender. Com o dinheiro, comprávamos uma comida gostosa como um pão com mortadela ou ajudávamos a nossa mãe a pagar luz e a água.
Era a realidade de muita gente. Os nossos vizinhos também catavam latinhas. Nós também ganhamos muitas doações e contamos com o Bolsa-Família, bolsa escola, auxílio gás.
A trajetória da minha família é uma história de sucesso. Os meus pais são pessoas honestas, que construíram tudo com o suor do trabalho. Criaram quatro filhas muito bem. Todas têm saúde, estão trabalhando e estudaram.
Eu queria ser Miss Brasil
Em 2012 eu fiz um curso técnico de fotografia na Universidade Tuiuti do Paraná. A minha mãe, Eunice Rosa da Silva, é a minha inspiração. Ela amava registrar os momentos da nossa família com uma câmera analógica. Às vezes não tinha dinheiro para revelar as fotos. Mas quando tinha, chegava em casa com pacotinhos cheios de imagens. Adorava ver os registros!
Ela é que me ajudou a pagar o curso de fotografia com metade do salário de empregada doméstica. Eu pagava a outra parte com o meu trabalho de modelo. Fotografava com a câmera analógica da minha mãe durante os exercícios do curso. Tirava muitas fotos da minha irmã Andressa. Sempre fomos muito conectadas. Ela me levou ao mundo da moda.
A Andressa participou de um concurso de beleza no colégio, em 2007. Estava linda com uma franja lisa de chapinha. O evento tinha uma passarela, convidados e jurados. A minha irmã era a única negra do concurso. E foi a vencedora. Naquele dia, foi um salto de autoestima para todas nós.
Em seguida, ela participou de outro concurso de beleza na Festa do Morango, em Pinhais. Quem ganhou foi uma mulher branca. Mas a minha irmã venceu na categoria exótica. Aí a gente pensou: 'Opa, pera. A nossa beleza é exótica?'. Como se ganhar o prêmio principal fosse algo à parte, que não coubesse a nós.
A partir de então, eu também comecei a participar de concursos de beleza. Em 2012, concorri ao Miss Pinhais e não ganhei. Em 2015 eu venci e fui para a etapa regional, o Miss Paraná. O meu foco era ganhar o Miss Brasil.
Durante as entrevistas do concurso, falei sobre a importância da representatividade, principalmente de uma menina preta. Eu costumo expressar o meu ponto de vista, o meu olhar e opinião em tudo o que faço. Mas a estratégia não deu certo. As pessoas não queriam que eu falasse sobre esses temas.
Naquele ano, uma mulher negra ganhou o Miss Paraná, foi a Raíssa Santana. Ela também venceu o Miss Brasil. Antes dela, só outra preta tinha conquistado o título, a Deise Nunes, em 1986.
As pessoas acham que beleza é algo fútil e passageiro. Mas eu busco trazer essa força que a moda traz. Precisamos fortalecer a nossa autoestima. Mesmo com as situações constrangedoras que acontecem até hoje.
Semana passada, eu fiz umas fotos para uma marca de cosméticos. O meu cabelo estava armado, um black power bem para cima e uma blusa brilhosa. Mas uma das produtoras não gostou do cabelo. Fiquei triste na hora.
Ela pediu para deixar o cabelo sem volume, bem baixinho, escondido atrás da cabeça. Eu argumentei: 'Gente, é o nosso cabelo. A gente usa assim para sair com as amigas'. Mas ela não aceitou. Sou grata pelo job e pelo cachê. Mas situações assim desgastam. Cabelo black power é para cima. Ele cresce assim, é normal.
"A Tuttan nasceu para reivindicar o espaço dos pretos"
"Na mesma época em que engravidei de Don, em 2017, eu formava uma ideia dentro de mim. Eu morava em uma chácara isolada com o meu namorado Rodrigo Nick, em Curitiba. Durante a gestação, pensamos muito sobre o mundo e sobre a nossa criança que iria nascer. Quando o meu filho vai sofrer racismo? Quando ele ainda for bebê ou na hora de ir para a escola?
Ele é um homem preto. Os jovens negros morrem diariamente no Brasil, não poderia ficar de braços cruzados. Cabe a nós criarmos uma nova realidade, e foi o que a gente fez. Durante o período da gravidez, eu e o Nick idealizamos a Tuttan, uma agência para impulsionar a carreira de modelos negros no Brasil.
É a primeira vez que sou chefe, a pessoa que está no comando. Eu não venho de uma família de empresários. Minha mãe é empregada doméstica e meu pai é pedreiro. Tenho 26 anos, estou aprendendo. Mas tenho experiência no mundo da moda, trabalho como modelo fotográfica há 10 anos. E sei que esse mercado tem casos de abuso e exploração.
Eu já sofri em ensaios. Muitas vezes, os cabeleireiros não sabiam como mexer no meu cabelo. Os maquiadores não tinham a base certa para o tom da minha pele. As modelos brancas eram tratadas de uma forma mais legal pelos donos da agência. Eu era excluída.
As negras, orientais, gordas e LGBTs sempre foram exceções nos desfiles e editoriais. Tinha uma ou outra e olhe lá.
As modelos brancas sempre eram as escolhidas para os trabalhos. É um racismo camuflado, muito sutil. Mas a gente sente desde que nasceu.
Após criar o conceito da agência, eu fiz questão de fazer uma festa de lançamento da marca. Em novembro do ano passado, preparamos um desfile no terraço do Cine Passeio, um prédio histórico em uma esquina de Curitiba.
Chovia muito. Mas foi ótimo. A água tornou tudo mais especial. Todos vibraram na mesma energia.
Enquanto o meu sócio e marido Rodrigo Nick cantava ao vivo e lançava o novo disco de rap, batizado de Tuttan, 30 modelos desfilavam marcas locais. Foi um dia muito importante, um trabalho colaborativo.
Reunimos pessoas pretas que nunca participaram de um evento desse porte. A Tuttan nasceu para reivindicar o nosso espaço. O nome da agência é relacionado com a trajetória dos negros.
Tuttan é uma abreviação de Tutancâmon, um rei egípcio, filho de Akhenaton. Essas personalidades históricas são lembranças que não vivemos, mas nos pertencem. É uma memória ancestral da África.
Somos uma família de pretos conquistando o nosso lugar no mundo. Apesar da pandemia e do ano atípico, a agência está crescendo. Nos desdobramos em vários trabalhos. Além do casting de modelos, somos uma produtora e idealizadora criativa. Trabalhamos com roteiro, backstage e agenciamento de equipe. Recentemente fizemos uma campanha para uma marca de amendoim. Nós que formamos a equipe. A manicure, a estilista e a diretora de arte eram negras.
É o início de um sonho, tem muito trabalho pela frente. Quero desconstruir o racismo do mercado. Algumas empresas não costumam contratar modelos nem funcionários negros.
Os principais shoppings de Curitiba não incluem pretos nos comerciais. Mas eu também consumo no shopping. Sabe por que eles não colocam a gente em um comercial? Porque eles não querem que lote de pessoas negras.
É mais do que necessário incluir negros no mundo da moda. A maior barreira para as pessoas pretas entrarem nesse universo é o valor altíssimo que as agências cobram. Elas pedem até R$ 5.000 só para os modelos fazerem parte do portfólio da empresa. Algumas pessoas não procuram uma agência porque não têm dinheiro.
É por isso que a Tuttan não cobra um valor para agenciamento e para as fotos. Eu falo muito de black money, dinheiro preto. É a grana que circula entre nós. É ter consciência de onde gira esse dinheiro.
Quero que os negros consigam viver, se sustentar, pagar o aluguel e comprar o que quiserem. É uma responsabilidade saber que a gente faz os modelos ganharem dinheiro e a Tuttan rende junto com eles. Graças a Deus e aos nossos guias espirituais, o território preto de Curitiba está em ascensão. Nós somos potência, temos que saber o nosso valor.
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