Mãe argentina celebra legalização do cultivo de maconha para uso medicinal
Resumo da notícia
- Mãe de uma criança no espectro autista, Valeria Salech comemora a legalização do autocultivo de maconha para fins medicinais na Argentina
- Ela é presidente da ONG Mamá Cultiva Argentina, criada em 2016, que reúne cuidadoras que cultivam para ajudar quem tem epilepsia, autismo ou câncer
- "Quem cultiva cannabis cultiva também paciência e amor-próprio, ressignifica suas funções e questiona o sistema de saúde que não nos contempla"
- A Argentina legalizou o cultivo para consumo próprio de maconha para uso medicinal na última quinta (12)
No final de 2012, Valeria Salech viu um vídeo em uma rede social que chamou a sua atenção: uma adolescente estava tendo uma convulsão. Em seguida, uma mulher passava algo pela gengiva da menina e a convulsão se interrompia.
Foi ali que a hoje presidente da ONG Mamá Cultiva Argentina, que existe desde 2016, teve seu primeiro contato com o uso medicinal da maconha. Depois de ver aquele vídeo, Valeria se comunicou por email com a mulher que aparecia nele —uma americana que usava resina de cannabis para tratar os episódios de convulsão de sua filha. E, 18 meses depois, colheu seu primeiro pé de maconha.
Assim, diz ela, conseguiu evitar remédios psiquiátricos e reduzir o uso de anticonvulsivos, para seu filho Emiliano, hoje adolescente, a partir do tratamento com a resina de cannabis.
Quando Valeria plantou maconha pela primeira vez, na tentativa de encontrar um tratamento alternativo para Emiliano, ela desafiou a lei argentina. Desde quinta (12), um decreto presidencial mudou isso, com a legalização do cultivo para consumo próprio de maconha para uso medicinal. A autorização para o plantio de cannabis será outorgada pelo Estado após um registro junto ao Ministério da Saúde argentino.
O decreto também prevê que planos de saúde e a rede pública devem fornecer medicamentos derivados da planta a pacientes que tenham prescrição médica.
Desde 2017, a Argentina já contava com uma lei que regulava a pesquisa médica e científica sobre cannabis medicinal, mas a norma era considerada excludente por ativistas como Valeria, já que restringia o direito apenas a pacientes com epilepsia refratária e não garantia o acesso gratuito a medicamentos derivados de cannabis para todas as pessoas que fazem uso deles.
Em conversa com Universa, Valeria Salech conta como ser mãe e cuidadora de uma pessoa com deficiência a transformou. Com ela, transformou-se também o país.
Como você chegou à maconha medicinal?
Tenho um filho que nasceu com epilepsia e, aos três anos de idade, quando já tomava muitos remédios, foi diagnosticado no espectro autista. Quando recebemos alta da maternidade, saí com a prescrição para três ou quatro anticonvulsivos, que ele tinha que tomar em diferentes horários. Eu passava o dia inteiro olhando uma planilha e seguindo um esquema de medicação. Logo, ele passou a ter algumas condutas disruptivas, com episódios de autoagressão, e prescreveram medicação psiquiátrica. Foi aí que eu disse: 'Chega'. Porque cada comprimido desses vem com um efeito terapêutico, mas também com um efeito adverso, que muitas vezes os médicos não informam. Comecei a pesquisar tratamentos alternativos e encontrei um vídeo em uma rede social, em que uma mulher passava a mão pela gengiva de uma adolescente e interrompia uma convulsão.
Aquilo me chamou a atenção. Eu me comuniquei com ela, que me respondeu de maneira muito amável e explicou que era resina de cannabis. Então eu comecei a estudar, pesquisar muito sobre a planta e, 18 meses depois, colhi meu primeiro pé de maconha. Naquele momento, não cheguei aos resultados que eu queria, mas sim a resultados ainda melhores do que os que eu havia imaginado. Não consegui controlar completamente as convulsões do Emiliano a ponto de retirar toda a medicação, mas consegui reduzir muito a quantidade de remédios que ele toma. E ele nunca precisou tomar os remédios psiquiátricos porque, com a resina de cannabis, ele deixou de ter condutas agressivas.
Ou seja, quando você começou a cultivar maconha, você ainda fazia isso?
Sozinha. Na verdade, mais ou menos. Porque, quando a gente começa a pesquisar, o primeiro contato costuma ser um "growshop" [lojas especializadas em produtos para cultivo], depois você entra em contato com cultivadores. É um ambiente de pessoas muito solidárias, e há muitos fãs da planta também. Mas eu estava sozinha no sentido de que não estava acompanhada de outras pessoas que cuidam de pessoas. Eu era uma das poucas cultivadoras que plantava maconha por questões de saúde.
Por conta disso, pensei que era preciso organizar um grupo que estivesse liderado por mulheres e que abordasse o cultivo não como um direito individual, mas como um direito ao acesso à saúde.
Foi a partir dessa ideia que surgiu o Mamá Cultiva Argentina, em 2016?
Decidi ir à apresentação de um projeto de lei para a despenalização do uso de cannabis medicinal no Congresso. Naquele momento, eu já estava conectada com outros cultivadores. Ao chegar lá, me deparei com um mundo que eu desconhecia, porque havia muitas mulheres na mesma situação que eu. Muitas delas mães ou cuidadoras, que cultivavam cannabis para muitas coisas: epilepsia, autismo, câncer, paralisia cerebral.
Como o movimento canábico era liderado por homens, percebi que tínhamos que organizar um grupo de mulheres. Foi aí que um companheiro comentou que, no Chile, existe um grupo chamado Mamá Cultiva e eu gostei muito do nome. Pedimos permissão a elas para reproduzir o nome na Argentina e foi assim que começou nossa viagem.
Sua relação com o cultivo de maconha mudou a partir do momento em que você passou a estar acompanhada de outras mulheres responsáveis pelo cuidado de pessoas?
Claro que sim, seria impossível não mudar. A primeira coisa que mudou foi ter percebido que éramos todas mulheres. Como era possível que não houvesse homens nessa situação? É uma pergunta que eu ainda me faço. Primeiro, eu associei com uma questão de rebeldia, que as mulheres têm mais coragem de desafiar, já que era algo ilegal. O homem, geralmente, assume mais a postura de 'se o médico não indica, melhor não arriscar'. E eu via que as mulheres iam mais adiante, especialmente as que eram mães. Porque as mães precisam decidir por outra pessoa. Nós estávamos decidindo por nossas crianças, que não tinham a capacidade de tomar decisões. Éramos levadas a desobedecer a norma, não por algo relacionado ao nosso corpo, mas ao de outra pessoa.
Eu me encontrei com muitas experiências parecidas com a minha. Deixei de me sentir sozinha, todas deixamos de nos sentir sozinhas, estávamos fazendo algo juntas. Aprendemos das experiências umas das outras. Ao compartilhar essas experiências, geramos um conhecimento coletivo, que é de todas. Vimos que os canabinoides funcionam melhor com alguns medicamentos do que com outros, com alguns estados clínicos do que com outros, começamos a trocar dicas de alimentação.
E isso virou a construção de um conhecimento diferente sobre saúde, uma saúde feminista, construída entre todas, que não é só a saúde individual ou a ausência de doença. Tem a ver com se sentir acolhida, com poder contar umas com as outras, compartilhar plantas, dicas de cultivo. Tudo isso hoje é Mamá Cultiva: aprender, compartilhar conhecimento e, depois de tantos anos, encontrar-nos em um lugar de poder. Porque conhecer é poder e nós nos sentimos empoderadas porque sabemos exatamente o que estamos fazendo e como estamos fazendo, além de resolver questões que os médicos não tinham podido resolver.
Mamá Cultiva Argentina cruza o debate feminista com questões da maternidade e também com questões relacionadas a pessoas com deficiência. Como você vê o lugar das mães de crianças com deficiência nessa discussão?
A maternidade de uma criança com deficiência é uma maternidade forçada. Porque a maternidade é para sempre, mas existem algumas tarefas que a maioria das mães deixam de realizar em algum momento. Há um momento em que os filhos crescem, começam a tomar banho sozinhos, saem de casa. Muitas mães de crianças com deficiência precisam realizar tarefas de cuidado para sempre.
Algumas, que têm determinados privilégios ou maior poder econômico, podem evitar fazer essas tarefas sempre, mas isso deveria ser um direito, não um privilégio. E digo mais: nós temos medo de morrer, por que quem vai dar banho neles se nós morrermos? Trocar fralda de um bebê é uma coisa, trocar fralda de um adulto é outra completamente diferente.
É preciso separar as tarefas de cuidado das tarefas de maternagem. Nós também queremos falar de maternidade em termos de desejo. Como mãe, posso ter o desejo de criar um filho, mas também posso me cansar e desejar que outra pessoa ocupe o meu lugar em alguns momentos para certas tarefas. Isso deveria estar naturalizado.
E o que muda no momento em que descobrem a cannabis como um tratamento alternativo eficaz?
Quando percebemos que o sistema de saúde não nos contempla integralmente como seres psíquicos, físicos e sociais, também nos percebemos como cuidadoras. Quando eu vou ao médico, ele me diz o que eu devo fazer com o meu filho e termina aí. Mas quem cuida de mim para que eu possa cuidar dele?
O cultivo de cannabis —o cultivo, não a planta— é uma ferramenta terapêutica para quem cuida. É uma ferramenta com a qual será possível fazer alguma coisa para melhorar a qualidade de vida de outra pessoa, logo, é também uma ferramenta para a cuidadora. Quem cultiva cannabis cultiva também paciência e amor-próprio, ressignifica suas funções, questiona o sistema de saúde que não nos contempla. Porque nós vamos com nossos filhos ao médico e passamos a ser a voz deles, as representantes deles. Mas nós mesmas não somos nada, somos um objeto que representa, deixamos de ser sujeitos.
Se na maternidade típica já acontece um apagamento da mulher como sujeito, imagino que na maternidade de uma criança atípica isso seja mais profundo.
Muitas vezes, a gente não percebe isso até que precisa vivenciar por muitos anos. Quando se tem um filho com deficiência, isso acontece o tempo todo, durante muitos anos. A criança já tem 12 anos e você está cansada de não existir, de ser a mãe de alguém, de ter se perdido atrás dessa criança.
A maconha nos deu a possibilidade de ver isso com muita clareza, porque a planta nos deu visibilidade como cuidadoras, como cultivadoras, como gestoras da saúde de nossos filhos. Também nos deu autonomia e possibilidade de crescer em um campo. Hoje, eu sou especialista em cannabis e você está aqui falando comigo. Algo aconteceu aí.
A legalização do cultivo pessoal de maconha para uso medicinal chegou e a figura central é um movimento de mulheres e mães. Antes, você mencionou que o movimento cannabis era liderado majoritariamente por homens.
E não somos qualquer mãe. Somos mães rebeldes, que questionam os imperativos e os papéis que nos foram impostos. E também não somos somente mães, para dizer a verdade. A maioria das pessoas que integram o Mamá Cultiva não é mãe. Mas ali nós falamos coisas que, se eu falasse como Valeria, ninguém me ouviria. Como mãe do Emiliano, por conta dessa figura angelical que a mãe adquire na sociedade patriarcal em que vivemos, eu pude ser ouvida.
Você costuma dizer que Mamá Cultiva Argentina não nasceu feminista, mas foi se tornando feminista. Como foi esse processo?
O clique foi quando percebi que a maioria das pessoas que buscam terapia com cannabis são mulheres. Mulheres que cuidam. Mulheres entre 35 e 50 anos, que cultivam para os filhos, para uma irmã, para a avó, para a mãe, para uma vizinha. Mulheres que se preocupam com a saúde de alguém.
Essas mulheres chegavam até nós exaustas, tristes, despenteadas, de saco cheio. Depois de ter sido maltratadas pelo sistema de saúde, invisibilizadas. E, no Mamá Cultiva, essas mulheres percebem que são importantes, que são necessárias.
Por que você acha que demorou tanto, já que a lei foi aprovada em 2017, para a legalização do cultivo pessoal de maconha para fins medicinais?
Demorou tanto porque tínhamos um governo conservador. O atual governo, do presidente Alberto Fernández, nos disse desde o começo [em dezembro de 2019] que esse era um assunto importante. Nós fomos convidadas ao Ministério da Saúde, onde nos disseram que havia intenção de avançar na regulamentação do autocultivo, que acabou um pouco atrasado pela pandemia.
E o que segue agora é a aprovação de uma nova lei, porque a de 2017 já ficou velha. Foi aprovada pelo governo de Mauricio Macri porque sabiam que era uma lei vazia de conteúdo, que foi votada porque o governo sabia que não aplicaria. Mas serviu para a gente ganhar visibilidade e legitimidade, para ganhar espaço na televisão, mesmo em programas mais conservadores, onde fomos entrevistadas.
Agora, precisamos de uma lei que contemple todo o marco normativo da industrialização da planta de cannabis, com um Estado presente, que regule e não permita monopólios em nenhuma parte da cadeia de produção, que incentive a participação de pequenos produtores. Porque quem lutou pela legalização merece um lugar quando for possível comercializar.
ID: {{comments.info.id}}
URL: {{comments.info.url}}
Ocorreu um erro ao carregar os comentários.
Por favor, tente novamente mais tarde.
{{comments.total}} Comentário
{{comments.total}} Comentários
Seja o primeiro a comentar
Essa discussão está encerrada
Não é possivel enviar novos comentários.
Essa área é exclusiva para você, assinante, ler e comentar.
Só assinantes do UOL podem comentar
Ainda não é assinante? Assine já.
Se você já é assinante do UOL, faça seu login.
O autor da mensagem, e não o UOL, é o responsável pelo comentário. Reserve um tempo para ler as Regras de Uso para comentários.