Topo

"Aos 20, descobri que não tinha canal vaginal. Aos 50, ajudo outras como eu

Claudia Melotti descobriu aos 20 que era portadora da Síndrome de Rokitansky - Thiago Patrial
Claudia Melotti descobriu aos 20 que era portadora da Síndrome de Rokitansky Imagem: Thiago Patrial

Claudia Melotti em depoimento para Marcela de Genaro

Colaboração para Universa

20/11/2020 04h00

"Eu sou Claudia Melotti, tenho 50 anos e sou médica dermatologista. Com 20 anos, numa consulta ginecológica, descobri que sou portadora da Síndrome de Rokitansky, doença congênita que afeta o sistema reprodutivo feminino e atinge 1 a cada 5 mil mulheres - no meu caso, nasci sem útero, canal vaginal e má formação nos rins. Ao longo dos nos anos foi compreendendo mais sobre minha condição e hoje sou uma das fundadoras do Instituto Roki, que ajuda outras portadoras da Síndrome.

Cresci numa fazenda em Nova Odessa, no Interior de São Paulo. Sou a única irmã entre cinco filhos, os outros quatro, homens. Meus primeiros anos de vida foram saudáveis e felizes, com muita brincadeira. Na pré-adolescência, minha mãe, super cuidadosa, me deu um porta absorvente. Eu levava para cima e para baixo me preparando para a menstruação, que nunca chegou. Quando tinha 14 anos, ela me levou ao médico e, junto com a minha família, recebi a informação de que não poderia ser mãe. Não foi um diagnóstico completo, não sabemos se por opção do médico, e naquela época era comum que eles decidissem pelo paciente, ou não.

Claudia quando criança - acervo pessoal - acervo pessoal
Claudia Melotti quando criança
Imagem: acervo pessoal

O que tenho na minha lembrança sou eu brincando de boneca e, descobrindo que eu não ia ser mãe, me despedindo delas, que eram minhas filhinhas. Essa é uma lembrança de dor, não vou dizer que não. Segui e como uma adolescente fui normal, com a minha família sempre trabalhando a minha autoestima. Olho o passado e vejo a vida voltando ao eixo.

"Achei que só tinha um hímen difícil de romper"

Decidi ser médica. Tive uns namorados, mas eram outros tempos. Minha mãe acreditava em virgindade antes do casamento, então eu também tinha uma cabeça careta para a época.

No primeiro ano da faculdade, em São Paulo, comecei a namorar um amigo do curso. Eu era virgem e ele também. Na tentativa de ter um relacionamento sexual, a gente percebeu que a coisa não funcionava.

Estudantes de medicina, fomos pesquisar e achamos que eu tinha um hímen difícil de romper, que é algo conhecido. Eu tinha 20 anos e na consulta com o ginecologista já queria resolver no dia, saber se dava para romper no consultório ou precisaria do centro cirúrgico. O desejo era encontrar meu namorado no dia seguinte.

O médico fez um exame de imagem e disse: "Você não sabe que não tem útero e não tem o canal vaginal?".

Claudia Melotti descobriu aos 20 anos que era portadora da Síndrome de Rokitansky - Thiago Patrial - Thiago Patrial
Claudia Melotti só descobriu aos 20 anos que era portadora da Síndrome de Rokitansky
Imagem: Thiago Patrial

Ele me explicou que eu tinha a síndrome de Rokitansky e provavelmente do tipo 2. São duas: a tipo 1, que atinge só a pelve e ocorre em 1 a cada 5 mil mulheres; e a tipo 2, com incidência menor, de 1 em cada 15 mil, que tem comprometimento sistêmico renal, ósseo e cardíaco. Aquele meu exame, por exemplo, apontou um rim ferradura.

"Meus relacionamentos amorosos me deram apoio"

Naquela época não existia um protocolo de opções de tratamento. O médico me disse que eu podia operar, fazer um método italiano, ou a dilatação, no qual você usa um molde de acrílico. Ele perguntou se eu tinha namorado, eu disse que sim, e o médico falou que ele poderia ajudar com isso na terceira opção.

Recentemente me reencontrei com esse ex-namorado e ele me disse: "Lembra que me convidou para ir ao Ibirapuera e terminou comigo dizendo que a gente não ia dar certo?". Apaguei algumas coisas da minha memória, mas ele contou que eu não queria falar o motivo até que, na época, revelei. Ele decidiu seguir comigo e ficamos juntos por 4 anos. Foi um grande namorado, discreto, correto, realmente não contou nem para os melhores amigos, porque pedi. Ele me deu suporte, essa segurança que eu tenho no masculino, de ser companheiro, de me apoiar. Se tivesse recebido abandono, ou fofoca, ou outra coisa do gênero, provavelmente teria outra postura frente ao masculino.

Demorei dois anos para conquistar um tamanho adequado de vagina, mas há casos em que através da dilatação isso é possível entre 3 e 6 meses. Acabamos terminando porque percebi que não seríamos compatíveis sexualmente.

Me formei médica, fiz dermatologia, conheci meu primeiro marido e ficamos juntos por 10 anos. Eu tinha alguns problemas de coluna, sempre uma dor devido à tensão por uma má formação discreta; algumas coisas de rim, algumas cardíacas, mas nada sério. Fui vivendo bem mas, aos 36 anos, recebi um diagnóstico errado de uma doença e poderia morrer em seis meses. Me separei.

Encontrei meu segundo marido e foi algo como uma coisa seguida com a outra. Eu ainda achava que iria morrer, demorou uns dois meses para eu descobrir que o diagnóstico estava errado. E esse meu segundo marido me disse: se você vai viver seis meses, eu quero viver esses seis meses com você. Contei tudo, falei de maternidade. E aí pronto, casei! É um relacionamento de 15 anos e houve muitas transformações.

"Encontrei paz em não ser mãe, mas foi um longo processo"

"Quando descobri que não poderia ter filhos, minha mãe se ofereceu para ser minha barriga solidária. E brincava até pouco tempo atrás dizendo que seria famosa por fazer isso aos 60 anos, que iria aparecer no Fantástico."  - acervo pessoal - acervo pessoal
"Quando descobri que não poderia ter filhos, minha mãe se ofereceu para ser minha barriga solidária. E brincava até pouco tempo atrás dizendo que seria famosa por fazer isso aos 60 anos, que iria aparecer no Fantástico."
Imagem: acervo pessoal

A questão da maternidade esteve presente desde a adolescência. Essa dor, por incrível que pareça, é tão visceral que passei por várias fases. Pensava em adoção, em uma época analisamos barriga solidária. Uma vez eu fui a um lama, ansiosa para saber se eu adotava ou não. O lama Michel me disse, calmamente: "Claudia, se você adotar você vai ter coisas boas sendo mãe e coisas ruins. Se você não for mãe, você vai ter coisas boas e coisas ruins". Era exatamente isso. Comecei a ser invadida pelas coisas boas de não ser mãe.

Naveguei em vários mares até 3 anos atrás. Veio uma certeza de que realmente não era o caminho, que já exercitava a maternidade em outras frentes e que essa energia foi sendo alimentada. Então, a questão foi sendo resolvida dos 14 aos 47, encontrei uma paz no meu coração, mas foi um longo processo.

"Contar para as pessoas foi como sair do armário"

Claudia Menotti em sua festa de casamento; " um relacionamento de 15 anos com muitas transformações" - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Claudia em sua festa de casamento; " um relacionamento de 15 anos com muitas transformações"
Imagem: Arquivo pessoal

Certo dia uma paciente, diretora de escola, chegou atrasada e disse "Cláudia, desculpe, estou com uma aluna com Síndrome de Rokitansky. Nunca ouvi falar disso". Começamos a conversar enquanto eu queimava umas coisinhas na pele dela. Chamou a atenção o conhecimento que eu tinha sobre o assunto. Pensei que era chegada a hora. Nunca tinha contado para amigos próximos. Eu disse: "Eu tenho a síndrome. Ela, deitada na maca, abriu os olhos, ficou emocionada e me apoiou. Eu me senti mesmo saindo do armário, foi uma libertação. Expliquei que pouquíssimas pessoas sabiam, mas achava que a hora havia chegado e queria conhecer essa menina e essa mãe dela.

Hoje os tempos são outros, todo mundo se expõe. A Isabella Barros, que é uma mulher de 18 anos, a aluna sobre qual a minha paciente falou, contou para todas as amigas da escola; eu me escondi até os 45 anos. A partir do contato com a Isabella e a sua mãe, Luciana Leite, uma supermulher, entendi que poderia fazer algo. A Luciana contou que elas queriam fundar um instituto e eu queria agir, mas não sabia por onde começar. Como médica, tinha acesso e boa entrada entre esses profissionais, então essa parte eu poderia fazer.

Uma coisa as três sabiam: havia deficiência de conhecimento, inclusive entre os médicos. A Isabella, por exemplo, não havia encontrado um no Brasil e fez acompanhamento em Harvard. Fomos a uma conferência de lá, em Boston, em outubro e nos conhecemos mais, decidimos que íamos fazer o Instituto Roki. Desenvolvemos o material, com base no que há em Harvard mais a nossa experiência aqui. Em junho deste ano abrimos o Instituto, no dia do aniversário da Isabella.

1 em cada 5 mil mulher tem Síndrome de Rokitansky

Neste processo descobrimos, por exemplo, que não há dilatadores adequados no Brasil, pois são para outra finalidade, que é o vaginismo, o que dificulta na construção do canal no caso de Rokitansky. Agora estamos produzindo dilatadores em parceria com a Unifesp e vamos começar a distribuir e buscar mudar a cabeça do médico.

Há histórias brasileiras terríveis, de médico no interior do país que dá uma gilete e manda a menina para a casa abrir a vagina, outras que dilatam o ângulo errado e acabam com problemas de evacuação.

Há meninas que guardam dinheiro para fazer uma cirurgia, sendo que um dilatador e orientação poderiam fazer isso. A ideia é que possamos mandar o kit, com a orientação de um médico local, claro. Enfim, há todo um universo que e o Instituto Roki vai poder atuar efetivamente, auxiliando essas meninas no ponto físico e auxiliando essas meninas principalmente no ponto psicológico.

Se pensarmos em termos estatísticos, somos 20 mil no Brasil, a enorme maioria sem orientação, que nem sabem que tem. Algumas acham que não são mulher. É muito triste quando você entra em contato com essas histórias e vê depressão, obesidade, abuso de drogas, de álcool, tentativa de suicídio.

Toda doença crônica já é um desafio, sem informação, pior. Queremos levar ao mundo que essa síndrome existe. Hoje acho que estou pronta, porque há 10 anos, quando eu falava, meu coração acelerava, eu ficava emocionada, chorava. Ainda choro de vez em quando. Não é um caminho, é uma jornada longa de cuidados e aprendizado. E precisamos de ajuda, ajuda psicológica, ajuda de bons médicos, de ajuda da sociedade sabendo do que se trata. Acredito que colocar luz nesse tema é essencial.