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Em livro, ela fala de estupros na infância e por que decidiu não denunciar

A escritora Esmínia Portman relata agressões sexuais em livro - Arquivo pessoal
A escritora Esmínia Portman relata agressões sexuais em livro Imagem: Arquivo pessoal

Luiza Souto

De Universa

22/11/2020 04h00

A cozinheira e escritora Esmínia Portman, 26, foi estuprada no dia em que completou sete anos por um vizinho e abusada aos dez, por um conhecido, em Macaé (RJ), onde vive até hoje. Na época —e até hoje—, escolheu não denunciar os agressores por medo de que algo pudesse acontecer a sua família.

Hoje casada e mãe de duas crianças, de cinco e três anos, decidiu relatar os abusos que sofreu no recém-lançado livro "O Valor da Âncora" (Autografia Editora), em que dá detalhes dos crimes e das consequências que eles trouxeram para a sua vida. Também passou a incentivar, em grupos nas redes sociais e entre amigas, outras mulheres a falar sobre casos semelhantes, ainda que elas decidam não expor os criminosos:

"As vítimas de violência precisam de ajuda, mas cada uma tem seu tempo para falar sobre seus traumas. Precisamos apenas de abraço, não que fiquem o tempo todo nos falando que temos que ser fortes."

Numa conversa por vídeo durante uma hora, entre lágrimas e pausas longas para respirar, Esmínia explica suas decisões.

O estupro

"Eu estava completando sete anos, e minha mãe resolveu fazer uma carne de panela para comemorar a data. Ela pediu para eu ir a um mercado, na esquina, comprar os ingredientes. Foi quando um homem me chamou. Ele estava encostado no portão da casa, feito de madeira pintada de azul, e vestia bermuda de tactel preta. Era filho de um vizinho e me pediu para segurar uma escada porque precisava pegar uma boneca em cima do guarda-roupa. Então, eu fui. Quando entrei no quarto, ele fechou a porta, me mandou tirar a roupa, colocou a mão na minha boca e ameaçou me matar se eu gritasse.

Quando me penetrou, senti uma dor que não se compara à do parto. Depois que que ele terminou, limpei meu sangue para ninguém perceber, coloquei a roupa e fui embora para casa."

Medo de contar

"Não consegui contar o que houve. Quando cheguei em casa, minha mãe ainda perguntou por que eu tinha demorado tanto, mas lembrei das ameaças que o agressor fez e fiquei quieta. Apenas falei que a fila do mercado estava grande. Lembro que não comi o que ela preparou para comemorar meu aniversário e ainda chorei a noite toda."

Outro abuso

"Aos dez anos, fui abusada por outro conhecido, dentro de casa. E também não consegui contar. Depois disso, tive depressão profunda e tentei me matar. Também tive anorexia e fui mal na escola. Minha mãe me levou numa psicóloga, para tentar entender o que estava acontecendo, mas não consegui me abrir com ela. Às vezes, encontrava o meu estuprador na rua e logo baixava a cabeça. Mas ele nunca mais fez nada comigo. Hoje, sei que ele tem mulher e filho. Também não tenho contato com o homem que cometeu o abuso."

Traição e prostituição

"Casei pela primeira vez aos 18 anos, porque queria logo sair de casa. E foi minha primeira relação depois dos abusos. Mas o deixei um ano depois. Tinha acabado de dar à luz quando descobri que meu marido tinha engravidado a ex-mulher também. Fui morar numa casa sujam cheia de baratas, sem fogão nem nada. Deixei meu filho sob os cuidados da minha mãe e consegui trabalho numa lanchonete para me virar. Mas fui demitida em pouco tempo, e o dinheiro que tinha só dava para alimentar meu filho. Já fiquei cinco dias sem comer. Minha família não tinha como me ajudar. Nessa época, conversando com um homem na rua, contei para ele que precisava de dinheiro para alimentar meu filho, e ele disse que poderia me ajudar, mas queria algo em troca. Então fui direta e disse que cobrava R$ 150. Dali fomos para o motel. Mas só fiz isso duas vezes porque não consegui ir adiante nessa vida. Já estava arrebentada por dentro.

Esmínia Portman - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Esmínia Portman hoje ajuda mulheres vítimas de violência de gênero
Imagem: Arquivo pessoal

O livro

"Eu venho escrevendo sobre tudo que passei há quatro anos. Mas nunca pensei em publicar. No início da pandemia, entrei em grupos de mulheres vítimas de violência, nas redes sociais, e comecei a contar minha história. Muitas mulheres se identificaram e me encorajaram a escrever o livro, contar como superei tudo. Então procurei uma editora para conseguir publicar a obra, e relatei, num e-mail, tudo que aconteceu comigo. No dia seguinte me enviaram mensagem mostrando interesse em publicá-lo. Lancei o livro, agora, em outubro. O nome vem da minha história. Eu vivia na Ilha do Francês, e tenho parentes que pescam. Então, eu sei bem que só conhece o valor da âncora quem passa com o barco por uma tempestade. Eu passei por muitas.

Nessa Ilha, tinha uma espécie de caverninha, e toda vez que ia para lá, passava horas pensando em tudo que me aconteceu. Eu chamava aquele lugar de minha âncora, porque era meu refúgio, onde colocava para fora o que estava sentindo e me sentia segura.

Reação da família

"Meu pai me abandonou quando eu tinha por volta de dois anos. Cresci com minha mãe e meu padrasto. Quando todos souberam o que me aconteceu, muitos parentes e amigos pararam de falar comigo. Eu não identifico meus agressores no livro, então parentes começaram a ligar para minha família perguntando quem eram esses homens. Até insinuaram que um dos agressores era meu padrasto. E não foi. Outras pessoas, incluindo amigas, ainda me ligaram para dizer que, se fiquei calada até agora, foi porque gostei do que aconteceu comigo. Comecei a me culpar. Decidi procurar uma psicóloga quando passei a dar meus relatos, antes de lançar o livro, e somente ela e meu marido me apoiaram. Mas hoje quem duvidou de mim, leu o livro e me pediu desculpas por ter desconfiado de mim. Minha mãe por exemplo sentou comigo e me ouviu, eu dei detalhes de toda a minha história, e quando acabei me deu um abraço, e está tudo bem."

Por que não denunciei

"Eu sei que hoje poderia denunciar meus agressores [o estupro de vulnerável pode ser denunciado em até 20 anos, que passam a contar a partir do momento que a vítima completa 18 anos], mas um deles tem família, dinheiro, e temo que possa fazer algo contra mim e meus filhos. E prender o cara não trará minha infância de volta nem vai apagar o trauma que ficou. Prefiro encorajar e ajudar outras mulheres a superar. Desde que lancei o livro, muitas vítimas já se abriram comigo e contaram pela primeira vez sobre os abusos que sofreram. Uma amiga minha relatou ter sido estuprada pelo próprio pai e só conseguiu contar agora, aos 43 anos.

Além disso, há o jeito com que a Justiça trata as vítimas. A forma como trataram a [promoter] Mari Ferrer desencorajou as vítimas a denunciar. A gente sempre acha que vão nos culpar, seja pela roupa ou pela hora que passava quando tudo aconteceu. A gente fica insegura."

O sexo após as agressões

"Às vezes, não sou afetiva com meu marido. Acho até hoje que todo mundo vai me abandonar. Na minha relação, tem posições que eu não consigo fazer porque me lembro do agressor. E meu marido respeita. Converso muito sobre isso com ele e com a minha psicóloga. Por isso, é preciso compreender que as mulheres precisam de ajuda, mas cada uma tem seu tempo. Precisamos apenas de abraço, não que fiquem o tempo todo nos falando que temos que ser fortes."

A virada

"Em 2017, conheci meu atual marido através de uma amiga. No início, quando soube que ele se interessou por mim, falei que não queria nada com ninguém, que estava esperando a morte mesmo. Mas ele insistiu e, em menos de um ano, nos casamos. Depois disso, comecei a estudar, e me formei em gastronomia. Hoje, sou dona de uma loja de salgados e tive mais um filho. Eles estão com cinco e três anos e agora estamos comprando uma casa."

Apoio a outras vítimas

O produtor editorial Lucas dos Anjos, um dos responsáveis pela seleção de obras da editora que publicou o livro de Esmínia relata que a história dela é surpreendente e bem diferente do que a empresa costuma receber. E que isso foi determinante para a decisão de publicar a obra.

"Ela, de fato, se mostrou uma pessoa muito forte e, apesar de tudo o que vivenciou, sempre se dizia feliz com a possibilidade de mostrar a sua história e alcançar o objetivo principal, que é o de não deixar as vítimas desistirem da vida."