Astrônoma brasileira na Nasa dribla "mansplaining" e machismo na área
"Deus me livre! Posso passar horas te explicando por que a astrologia está errada", brinca a consultora da Nasa Duília de Mello, 56, após ouvir uma repórter ariana perguntar se uma astrônoma pode acreditar em astrologia.
Ela, que é vice-reitora de estratégias globais da Universidade Católica da América em Washington, DC, nos Estados Unidos, mantém o bom humor ao explicar por que aceitou liderar o processo de digitalização da Biblioteca Oliveira Lima, o maior acervo de obras brasileiras fora do país, dentro da universidade.
Também criadora da ONG Mulher das Estrelas, em que estimula a criação de aulas de robótica, física e matemática na rede pública de ensino no Brasil, conta como enfrenta machismos diários num meio em que há ainda poucas mulheres.
"Sabe o famoso mansplaining? Acontece toda hora", ela diz.
Duília contribui para o Goddard Space Flight Center (que gerencia as comunicações com os astronautas da Estação Espacial Internacional), especialista na análise de imagens do telescópio Hubble, e foi responsável pela descoberta da supernova SN1997 (supernovas são as megaexplosões que ocorrem no fim do ciclo de uma estrela). Estava ainda na equipe que identificou as chamadas "bolhas azuis" (aglomerados estrelares detectados pelo famoso telescópio Hubble).
Em 2016, foi ainda a primeira mulher a se tornar professora titular do departamento de Física da universidade em que leciona, criado nos anos 50, e, ainda assim, ali percebeu que faltava algo na carreira.
"Sempre falo que o céu não é o limite, que não existe teto de vidro. Comecei a me perguntar que limite eu ia quebrar e decidi entrar na liderança da faculdade. Acredito que, quando estamos na liderança, criamos um impacto de transformação no sistema."
Esse comichão alçou Duília ao posto de vice-reitora da universidade, em 2016. E por ser brasileira, recebeu a missão de digitalizar todo acervo da biblioteca do diplomata, historiador e jornalista Manoel de Oliveira Lima (1867-1928), um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras, e de sua mulher, Flora de Oliveira Lima. A coleção original foi doada à universidade em 1924 a fim de disseminar a cultura colonial luso-brasileira no exterior. Ela conta hoje com 60 mil obras, entre elas as correspondências originais do casal com mais de mil acadêmicos e escritores, como Machado de Assis.
A biblioteca estava fechada e foi Duília quem conseguiu patrocínio de US$ 500 mil (cerca de R$ 2,7 milhões) nesses últimos anos para reabri-la. Com esse auxílio, chamou a biógrafa de Oliveira Lima, Nathalia Henrich, para catalogar o material. E sugeriu ainda outra mulher, a brasileira Livia Lopes, mestre em direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro, para comandar o Centro de Estudos Latino-Americanos e Ibéricos da Universidade Católica da América, fundado em outubro dentro da biblioteca.
Agora, precisa contratar especialistas para fazer a digitalização do acervo.
"Nosso próximo passo é a acessibilidade ao acervo. Antes de mim, começaram um processo de digitalização, mas não tem nem 10% prontos. Precisamos contratar técnicos especialistas. São milhares de terabytes [de arquivos], e precisamos colocar tudo dentro do servidor da universidade. A gente vai gastar todo o ano de 2021 para fazer isso. E em 2022 vai ficar público para todo mundo. Depois, ainda faltarão os outros 90% para digitalizar", ela explica.
Flamengo, Peter Frampton e nave favorita
De família mineira, Duília nasceu em Jundiaí, no interior de São Paulo, mas se instalou em Brás de Pina, na zona norte do Rio de Janeiro, ainda na infância. "Nerd", como ela mesma se define, era curiosa sobre o que havia no espaço e diz que nenhum professor era capaz de sanar suas dúvidas.
A mãe então lhe conseguiu uma bolsa de estudos no Instituto Nossa Senhora das Dores, um colégio de freiras onde, afirma, teve excelentes professores de ciências e matemática. "E sempre fui muito incentivada por eles."
Aos 15 anos, tinha três grandes paixões: o time do Flamengo, Peter Frampton, "o maior roqueiro de todos os tempos", e uma sonda espacial chamada Pioneer 11. Também admirava ficção científica e acompanhava o trabalho do astrônomo Ronaldo Mourão [uma das maiores autoridades brasileiras no tema e fundador do Museu de Astronomia e Ciências Afins], "um senhor de um cabelo branco que parecia o Einstein". Queria ainda ser que nem o [cientista] Carl Sagan. Foi quando percebeu que teria que se formar em astronomia.
Mas, quando falou aos pais sobre a sua decisão, ouviu que ia "morrer de fome".
"Mas nunca vi nenhum cientista cair na rua morto de fome", ela ri.
De família humilde —o pai não concluiu o ensino fundamental e a mãe havia largado a profissão de professora primária para cuidar dos três filhos—, sua mãe novamente conseguiu uma bolsa de estudos, dessa vez num pré-vestibular no Méier. E para saber se a filha realmente queria seguir aquela carreira, levou a jovem ao Observatório do Valongo, sede do curso de graduação em astronomia da UFRJ, no centro do Rio.
"Minha mãe sempre foi assim: a pessoa que fazia a gente estudar. E ela falava muito para mim e minha irmã que nós tínhamos que ser independentes dos homens, que nós não iríamos depender dos maridos. A minha mãe tinha essa preocupação com a gente."
Com o incentivo, formou-se em astronomia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, fez mestrado no Instituto de Pesquisas Espaciais, em São José dos Campos (SP), e doutorado na Universidade de São Paulo, na mesma área.
Mais mulheres nas estrelas
Duília diz que só se deu conta da escassez de mulheres no meio da astronomia —ela era uma das seis mulheres numa turma de mais de 20 alunos na graduação— quando saiu do Brasil, há 20 anos, e se viu, por exemplo, em meio a centenas de homens num refeitório do Observatório do Chile.
"Mas hoje tem mais mulheres jovens [no meio]. Percebo isso nos congressos. Muitas são minhas ex-alunas até. Mas a progressão na carreira ainda é muito lenta. Já era para ter mais mulheres da minha faixa etária em posições de liderança."
Se a gente não prestar atenção nisso, a mulher nunca vai conseguir liderar nada. É não se acanhar nem ter medo de dar um passo para cima.
Interrupções machistas
"Sabe o famoso mansplaining?", pergunta a pesquisadora, antes de começar a listar os episódios de machismo que já enfrentou.
"Estava sentada num restaurante, com amigos brasileiros, e eles começaram a falar sobre o espaço, buraco negro, sem entender nada, porque só eu era astrônoma ali. Quando falei, começaram a me consertar e a querer explicar para mim as coisas. Às vezes, não é nem por mal, mas estão acostumados a fazer isso. Eu perguntei: 'Quem é a astrônoma na mesa?'. Mas isso acontece muito. A gente nem presta muita atenção porque é acostumada a lidar com isso."
Diz ainda que vê muitas estudantes reclamarem de assédio nos cursos de física e engenharia. E ressalta que na universidade existe, inclusive, um treinamento online sobre o tema, para se evitar qualquer tipo de preconceito e violência de gênero. Na Nasa, ela complementa, há também políticas claras contra assédio.
"Todos têm que fazer o curso. Acho que ele não inibe o cara que vai assediar, mas [o curso] dá clareza para a mulher entender o que não é correto."
Para incentivar mais mulheres no meio, Duília, que foi escolhida como uma das dez mulheres que mudam o Brasil pelo Barnard College, afiliado à Universidade Columbia em 2013, fundou há cinco anos a instituição Mulher das Estrelas, com o objetivo de reunir uma rede de especialistas em áreas como física, matemática e robótica para estimular a criação de clubes de ciências e as competições científicas entre as escolas, com a curadoria à distância.
"A ideia original é levar cientistas para as escolas, para motivar as crianças para a ciência. Hoje, faço uma parte, quando vou Brasil, e desde que comecei já falei para mais de 30 mil jovens e crianças no país."
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