Do rodízio de energia ao de comida: mães relatam efeitos do apagão no Amapá
Após 22 dias de apagão, o Amapá voltou a fornecer energia para 100% das residências, segundo confirmaram Linhas de Macapá Transmissora de Energia e o Ministério de Minas e Energia. A empresa concluiu, na madrugada desta terça-feira (24), o restabelecimento da carga de energia em dois transformadores na sua subestação, que pegou fogo no dia 3 de novembro e provocou um blecaute em 13 dos 16 municípios do Estado.
Entre os moradores, porém, há desconfiança. Até a publicação desta reportagem, na tarde desta terça, a auxiliar de serviços gerais Dolores Alves Cardoso, 40, ainda estava sem luz para trabalhar, no bairro Marabaixo, na capital. Por causa da falta de energia, ela perdeu toda a compra do mês e até hoje está alimentando a família, incluindo um neto de um ano, com comida enlatada. A água vem do poço do vizinho, que divide com ela o que consegue recolher.
Já a dona de casa Adria Marcele Bentes de Sousa, 26, tinha acabado de conversar com a reportagem, às 10h30 desta terça, quando viu a energia acabar. Ela, que tem um filho com paralisia cerebral, de 5 anos, conta com a solidariedade de um supermercado: a dona a deixou usar o gerador do estabelecimento para que ela pudesse ligar o aspirador de secreção que o menino usa.
Pelo descaso com a rede de distribuição que abastece o estado, mães como Adria e Dolores viram seus filhos correrem risco de vida. E apesar de se sentirem aliviadas com a promessa de volta à normalidade, perguntam se agora o estado em que moram, com seus 861,8 mil habitantes, será olhado com mais cuidado.
Veja abaixo o relato dessas mães.
Adria Marcele Bentes de Sousa
"Moro no município de Porto Grande, a 100 quilômetros da capital. Fiquei sem energia no primeiro dia do apagão (3) até sábado de manhã (7). Depois, vivemos sob rodízio. Meu filho, de 5 anos, tem paralisia cerebral e usa traqueostomia para respirar. Também usa um aspirador e se alimenta por sonda. Ou seja: toda comida dele tem que ser batida.
Tive um parto difícil, com violência obstétrica, e ele entrou em sofrimento fetal. Passou dois meses na UTI. Lembro da sensação horrível chegar em casa sem ele. Parecia que tinha perdido meu filho. Detalhe: naquela noite que voltei para casa sem ele, em 2015, também não tínhamos energia.
Em casa moramos eu, ele e o meu marido. E a prioridade é nosso filho. Durante o dia, o pai sai para trabalhar. Ele é operador de máquinas. Eu trabalhava em escritório antes de ser mãe, mas parei minha vida para cuidar do meu filho.
No começo deste mês, quando acabou a energia, a dona de um supermercado atrás da minha casa me deixou usar seu gerador. Arrumei uma extensão de 200 metros para chegar até onde moro. Então, quando ela o ligava, por volta das 8h, eu corria com tudo: batia a comida do meu filho, dava banho nele, fazia a inalação e aspirava a secreção, que é a baba dele. Também carregava o celular e ligava a geladeira, porque tudo dele tem que ser fresco.
O gerador era desligado por volta das 23h30. Quando não tinha como usar o aparelho, eu tentava com o pano. Batia no peitinho dele como a fisioterapeuta faz e pedia para tossir. Também pegava no colo e acalmava.
Com tudo escuro e no calor, eu ficava com a casa aberta, e passava a noite balançando ele na rede para deixá-lo o mais calmo possível. Se com uma criança saudável já seria difícil, imagine ele. Com o gerador, não perdemos muita comida. Mas um galão de 5 litros de água agor custa R$ 20, era R$ 7. Ficou tudo muito caro. Eu aproveitava a água da chuva para tomar banho.
Uma noite acordei chorando, agradecendo por estarmos vivos. Agora resta saber se as coisas realmente voltaram ao normal, porque depois que anunciaram que a energia foi reestabelecida, ainda faltou luz aqui."
Dolores Alves Cardoso
"Sou da comunidade ribeirinha do Pará, mas há 25 anos cheguei no Amapá em busca de uma vida melhor, com minha mãe. Nunca vi algo parecido acontecer aqui. Claro que tinha situação de faltar energia, mas logo voltava.
Moro em Santana, a 30 quilômetros de Macapá, com meu marido, meus três filhos, de 17, 12 e 3 anos, minha nora e meu neto de 1 ano. No terreno da frente vive a minha mãe, de 78. Desde o apagão, foram 15 dias sem luz e água.
Antes disso tudo acontecer, eu tinha feito as compras do mês para comer, e tive que jogar fora, estragou tudo. Agora estou passando necessidade. Pode até ter acabado o rodízio de energia, mas na minha casa estamos em rodízio de comida. E de água. Nem louça estamos lavando. Banho, só à noite.
O vento ainda resolveu não bater nesse período, e a gente não tem dormido para abanar as crianças. Eu preciso sair de casa às 5h30 para pegar três ônibus até chegar ao trabalho. Estamos comprando água para beber, mas tudo aumentou de preço. Então compro para as crianças, e os adultos pegam água do poço do vizinho, jogam cloro e bebem.
Costumo dizer que é o pobre lascando osso. Já temos situação difícil, e ainda aumentam os preços. Uma caixa de vela, que costuma ser R$ 2, passou para R$ 14. Mas a gente precisa comprar, né?
Lamento muito que os governantes não estejam nem aí pra gente. Não recebemos uma doação, não ganho auxílio emergencial. Meu marido trabalha em bar e nossa renda mensal é de R$ 1.200, para oito pessoas. E eu que pago a energia e a água, que, aliás, não chegam. Mas ainda tenho emprego e dá para comprar pelo menos um pão.
Estamos comendo tudo enlatado. Enquanto eu não tiver certeza de que a luz voltou mesmo, não dá para sair comprando comida. Tenho a sensação de que vão esquecer de tudo que passamos assim que acabarem as eleições. Vão vir aqui, distribuir cesta básica e pronto. Nosso povo é mesmo muito sofrido.
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