Como Meghan Markle, elas sofreram aborto espontâneo: é uma dor silenciada
"Uma dor quase insuportável". Foi assim que Meghan Markle, ex-atriz e duquesa de Sussex, descreveu o aborto espontâneo que sofreu em julho. Em um relato publicado ontem (24) no jornal The New York Times, ela descreve como o que sentiu quando sua segunda gestação, que não chegou a se tornar pública, foi naturalmente interrompida. No texto, Meghan ainda lamenta que essa seja uma experiência pouco compartilhada entre as mulheres — mesmo que atinja uma a cada dez gestantes, segundo o Ministério da Saúde.
"Perder um filho significa carregar uma dor quase insuportável, vivida por muitos, mas falada por poucos. Apesar da impressionante semelhança dessa dor, a conversa continua sendo um tabu, cheia de vergonha injustificada e perpetuando um ciclo de luto solitário Meghan Markle
Esse é um sentimento compartilhado por pelo menos outras três mulheres, ouvidas por Universa. Uma delas teve o aborto há 28 anos; outra, há quatro meses. Mas todas relatam o sentimento de impotência diante da perda, o vazio que ocupa os primeiros dias seguintes e, principalmente, a solidão durante o luto.
Eliana Mattos, de 58 anos
"Foi o dia mais triste da minha vida"
"Aos 21 anos eu me casei, e aos 23 tive a alegria de engravidar. Eu tinha aquele desejo imenso de ser mãe, e quando soube foi tudo muito emocionante. Sempre gostei muito de mexer com artesanato e comecei logo a querer fazer coisas para o enxoval, aquela emoção toda do primeiro filho. Até o terceiro mês foi tudo normal, mas pouco depois comecei a sentir leves pontadas na barriga, fraqueza e uma sensação estranha de que tinha algo errado. Assim que completei o quarto mês, fiz um ultrassom, ouvi o coraçãozinho do bebê e foi uma das emoções mais fascinantes da minha vida. Uma semana depois, as dores começaram a aumentar, até que um dia eu percebi um pequeno sangramento.
Fui para o hospital, muito preocupada. Mas o médico ouviu o coraçãozinho do bebê, disse que estava tudo bem, mas recomendou repouso total, porque o sangramento não era normal. Obviamente fiquei muito preocupada, tomei as vitaminas que ele receitou, deitei na cama e fiquei quietinha. Minha sogra veio me visitar, perguntar como eu me sentia, respondi que estava bem e ficamos conversando, até que escutei um estrondo na minha barriga. Olhei para a cama e estava toda cheia de sangue. Meu marido me pegou, me enrolou num lençol e me levou correndo para o hospital. Lá, nós tivemos a triste notícia de que eu sofrera um aborto espontâneo.
Foi o dia mais triste da minha vida. Já tive muitas perdas, mas eram toleráveis. Perder meu bebê foi horrível, a sensação mais angustiante, mais degradante que eu já senti. Uma sensação de impotência, de incapacidade. Entrei numa tristeza terrível. Eu já sentia meu bebê na barriga, eu já via essa barriga saliente, e daqui a pouco ele não estava mais lá.
"Não queria fazer curetagem, mas tive que fazer, pela minha saúde"
Passadas algumas horas, o médico disse que eu precisaria voltar no dia seguinte para fazer a curetagem, e eu não queria ir, de jeito nenhum, mas tive que fazer pela minha saúde. Meu mundo desabou. Eu não me conformava. Por que eu não podia ficar com meu filho? Por que ele não podia mais continuar crescendo dentro de mim? Os médicos disseram que o feto não estava bem formado e que meu organismo, entendendo isso, interrompeu a gestação.
O médico pediu para esperar seis meses para tentar de novo, mas eu não queria. Eu pensava que, se engravidasse de novo, perderia de novo. Aí eu fui enrolando, enrolando, enrolando, e o medo não deixava.
"Engravidei novamente e fiz repouso total, com medo de que acontecesse novamente"
Levei um ano e oito meses para engravidar pela segunda vez, aos 25 anos. Eu passava muito mal, tinha azia, um mal-estar horrível, e muito medo. Me desliguei de tudo em volta, a minha vida passou a girar em torno daquela gravidez, que tinha que vingar, tinha que dar certo. No quarto mês, mais uma vez depois de ouvir o coração do bebê, que hoje eu sei que é uma menina, eu tive um sangramento leve, e fiquei desesperada, pensando "vai acontecer tudo de novo, não vou suportar". Fiz repouso total. E graças a Deus minha gravidez vingou. Minha filha Jéssica nasceu e hoje está com 26 anos.
Eu não tinha amigas próximas para dividir essa dor, passei o tempo todo eu comigo mesma mesma. Depois do aborto eu não tive com quem desabafar, e na segunda gestação não tinha com quem dividir o medo. Depois que eu tive o sangramento da segunda gravidez, meu marido parou de dormir comigo na cama, ele dizia que tinha medo de machucar o bebê durante a noite. Então foi realmente muito solitário. Com isso, não quis ter mais filhos.
Minha filha é minha companheira em todos os momentos, mas um filho não substitui o outro.
Naquele momento eu pensava que não tinha sido digna de ser mãe, mas hoje vejo que aquilo foi só para me fortalecer e me tornar a mãe que sou hoje. Mas toda vez que eu me lembro desse episódio, que já tem 28 anos, a emoção flui e eu choro".
Fernanda Friedrich, de 35 anos
"De repente planos e projetos são arrancados"
Fiz o teste em casa, descobri a gravidez e fiquei superfeliz. Eu não tinha histórico de problemas na família, então [o aborto espontâneo] nunca passou pela minha cabeça, eu não me informei sobre, não é um assunto tratado abertamente. E, diferentemente do Brasil, onde a gente faz muitos ultrassons durante a gravidez, aqui no Canadá [onde Fernanda mora com o marido há quatro anos] são apenas dois: um para atestar a gestação, lá pela décima semana, e o morfológico, na vigésima semana. O resultado do meu primeiro ultrassom, na 11ª semana, mostrou que o bebê estava muito pequeno para esse tempo, e os médicos pensaram que fosse um erro nos meus cálculos. Seis semanas depois, numa consulta de rotina, a médica não detectou batimentos cardíacos.
Tivemos um quadro de triploidia [quando o feto se forma com três cargas genéticas no lugar de duas], que não tem muita solução, mas geralmente o aborto acontece no início da gestação, mas a minha, por falta de sorte, foi até a 17ª semana. Em alguns casos raríssimos a criança chega a nascer, mas morre horas depois. E no fim do dia eu agradeci por não ser esse o meu caso, porque teria sido muito mais doloroso.
Na época, eu e meu marido morávamos aqui há pouco tempo, não tínhamos amigos, família, ninguém. Foi horrível. É como se a gente tivesse uma timeline na cabeça, com planos e projetos, que vão ficando mais estabelecidos à medida que a gestação avança — àquela altura já tínhamos enxoval, expectativas — e de repente tudo isso é arrancado. Tudo que você pensou que ia viver, cancela tudo, e fica um vazio enorme no lugar. Na época eu ficava pensando o que eu tinha feito, se tinha acontecido porque eu tomei café um dia, por exemplo. Mas não tinha nada a ver com isso.
"Minha segunda gravidez também não foi para frente"
Depois do primeiro aborto, os médicos disseram que, como meu corpo não tinha nenhum problema, eu poderia engravidar de novo. Assim que passou a quarentena, voltamos a tentar. Eu só conseguia pensar em ter um bebê para viver todos aqueles planos de novo. Três meses depois, com o aval dos médicos, engravidei de novo. E já no primeiro ultrassom, na décima semana, descobri que a segunda gravidez também não foi para frente.
Da primeira vez que eu tive um aborto, o choque foi tão grande que não deu para entender direito, e eu tentei lidar da forma que eu encontrei ali, "vamos seguir a vida". A ficha caiu mesmo depois da segunda perda, porque tive que parar e refletir.
"É importante falar sobre a perda gestacional"
Lembro de escrever um texto sobre o que tinha acontecido e muitas pessoas entraram em contato comigo contando que tinham passado por isso, mas que não falavam sobre essa dor, essa culpa. O primeiro pensamento é "o que eu fiz de errado?". E por isso é tão importante falar sobre a perda gestacional. As mulheres precisam entender que isso acontece. Acho que teria sido melhor ter essa possibilidade em mente. Da segunda vez, quando eu entendi que essa possibilidade existia e não era minha culpa, foi melhor. Não diminuiu a dor, claro, mas pelo menos não fiquei buscando supostas falhas minhas para explicar aquilo.
A minha terceira gravidez aconteceu um ano e meio depois da última perda, e tive que fazer um trabalho psicológico muito grande para controlar as minhas emoções [o filho de Fernanda, Ziggy, hoje tem um ano]. É muito difícil. Só consegui contar para as pessoas quando estava com 16 semanas, para algumas só depois de 20 semanas, porque é muito complicado explicar para as pessoas como tudo aconteceu.
Comprar o enxoval é um pesadelo para quem já perdeu um filho, tinha medo de comprar as roupinhas e ficar pensando no bebê que estaria ali dentro. Por um tempo, eu parei de seguir minhas amigas que têm filhos nas redes sociais, eu sei que parece péssimo, mas aquilo me lembrava de coisas que eu não queria lembrar naquele momento, e nem todo mundo entende isso.
Priscila Valderrama, de 39 anos
"Passei uma hora esperando a ambulância, com dor e sangrando pra caramba"
"Quando descobri que estava grávida, foi uma surpresa. A gente não evitava, mas não pretendia ter filhos. Passando o susto, ficamos muito felizes e começamos a fazer planos, imaginar uma série de coisas, pensar em nomes. Um dia, lá pela sexta semana, no meio da noite, comecei a sentir uma pontada forte, fui ao banheiro e vi um sangramento bem fraquinho, de cor rosa. Pesquisei, perguntei para amigas que são mães e percebi que era normal, que só deveria me preocupar se fosse um sangramento mais forte. Ficamos meio preocupados, eu e meu marido novatos, mas voltei a dormir. De manhã, percebi que ainda estava sangrando, mais forte desta vez.
Pesquisei qual era o hospital mais próximo com atendimento de obstetrícia, fomos para o pronto-socorro e, chegando lá, estava com atendimento exclusivo para pacientes com covid-19 [tudo aconteceu em junho, quando a pandemia passava pelo pico no Brasil]. Fui atendida por uma médica que não era ginecologista, que fez um exame de toque, mas parecia meio apavorada e disse que me encaminharia para outro hospital. Passamos uma hora esperando a ambulância, eu com dor, sangrando pra caramba.
Pedi para sermos liberados, podíamos ter ido para outro hospital no nosso carro mesmo, se ainda tivesse algo a ser feito. A ambulância chegou e, quando eu estava fazendo a triagem no segundo hospital, disseram que eu tinha sido levada para o hospital errado e me transferiram pela segunda vez, então para Guarulhos [cidade na Grande São Paulo]. Todo esse processo, entre a entrada no primeiro hospital, as duas transferências e eu finalmente receber atendimento de um especialista passaram umas seis horas.
O rapaz que fez o ultrassom me machucou muito. Me atendeu de cara feia e apertou muito o aparelho dentro de mim. Tive a impressão de ter recebido um tratamento como se eu tivesse causado o aborto. Ninguém tem o direito de fazer isso, não interessa o que a pessoa fez, mesmo que tivesse sido um aborto provocado. Essa parte foi a mais difícil: ser tratada como criminosa sem ter feito nada e justamente na hora que você está precisando de apoio.
"Curetagem é um procedimento super invasivo"
Quando fui atendida por um médico da área, ela confirmou o aborto e insistiu muito para que eu fizesse a curetagem, mas eu sei que até o terceiro mês de gestação esse não é um procedimento necessário, o corpo consegue eliminar o feto sozinho. A curetagem é um procedimento super invasivo. O médico insistiu muito e eu disse "não, não vou fazer". Já era noite, queria ir para casa.
É triste, mas a gente pensa que foi melhor assim. Antes no começo da gestação do que mais pra frente, ou ainda depois do parto. Conversei com outras pessoas sim, mais com mulheres. É difícil lidar com o luto, principalmente nos primeiros dias.
Além de ser um episódio triste para a mulher que passa, sinto que as outras pessoas evitam tocar no tema, talvez para não tocar numa ferida, mas acaba se tornando um processo mais solitário. Agora a gente quer ter um filho, e estamos tentando engravidar de novo."
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