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"Tentei engravidar durante um ano sem saber que estava com laqueadura"

A dona de casa Cinara Bastos, que passou por uma laqueadura sem o seu consentimento - Arquivo pessoal
A dona de casa Cinara Bastos, que passou por uma laqueadura sem o seu consentimento Imagem: Arquivo pessoal

Cinara Bastos em depoimento a Abinoan Santiago

Colaboração para Universa

30/11/2020 04h00

"Tenho 40 anos e, há nove, vivo com meu marido, o André Luiz. Quando a gente se conheceu, ele me disse que era louco para ser pai. Então, decidimos tentar ter um filho. Deu certo. Engravidei muito rápido, em 2012.

Sou dona de casa e, à época, tive uma gravidez tranquila. Dei à luz o meu bebê na maternidade pública Bárbara Heliodora, em Rio Branco (AC). Eu já tinha dois filhos antes deste episódio. A Brenda Melissa tem hoje 20 anos, e o Luan Gabriel está com 23.

O meu bebê se chamava Luiz Henrique. O quartinho estava todo preparado. Mas, com poucos dias de nascido, nosso bebê morreu. Foi o único filho que meu marido teve até hoje. Era o sonho dele.

Depois que perdi o meu filho, passei por um período muito doloroso. No começo, eu queria morrer. Foi um período muito difícil para todos nós.

Depois de um tempo, mais ou menos um ano, começamos a tentar engravidar de novo. Foram várias tentativas e eu não conseguia de maneira nenhuma. Tentei engravidar durante um ano sem saber que estava com uma laqueadura [cirurgia que promove a esterilização da mulher] feita no momento da cesárea, sem o meu consentimento.

Sempre que minha menstruação vinha, sentia tristeza por saber que, mais uma vez, não tinha dado certo. Depois de um ano, isso fez acender um alerta. Sempre me cuidei após ter meus dois primeiros filhos. Usava medicação contraceptiva e sabia que, se deixasse de tomar, poderia engravidar logo. E eu não estava tomando anticoncepcional. Foi assim que acabei suspeitando de algo errado por não ficar grávida.

Médico se assustou ao descobrir que eu não sabia do procedimento

cinara - Arquivo pessoal - Arquivo pessoal
Cinara Bastos
Imagem: Arquivo pessoal

Certo dia, para tentar descobrir o que havia acontecido, me dirigi à maternidade para falar com o médico que me atendeu. Ele disse que foi um parto normal, como qualquer outro. Perguntei se ele fez laqueadura, porque existe todo um procedimento para isso, e a pessoa deve dar permissão. O médico respondeu: 'Você chegou com algo assinado aqui autorizando?'. Eu disse que não.

Inconformada com a resposta dele, fui à direção do hospital pedir meu prontuário que chegou após sete dias. Revirando os papéis, descobri que fui submetida a uma laqueadura sem minha permissão. Perdi uma criança que queria muito e não consegui mais engravidar por causa de um procedimento que não autorizei. Se eu estava esperando mais um, era porque queria. Não era nenhuma adolescente na época.

Fui a um ginecologista para confirmar se a informação estava certa porque não queria acreditar no que estava vendo. O primeiro médico se recusou a ler o prontuário. O segundo confirmou a cirurgia. E até se assustou ao descobrir que eu não sabia. Chorei, ali mesmo, no consultório. Nosso chão desabou mais ainda porque tentávamos ter outro bebê, mas não sabíamos que não podíamos.

Casamento abalado e busca por justiça

Isso abalou o nosso casamento. A gente até chegou a se separar. Como meu marido queria muito que eu engravidasse, acabamos brigando por causa disso. Mas não duramos muito tempo longe. Foram apenas dois meses e voltamos. Ele acabou entendendo que eu não tinha culpa nisso.

Procurei um advogado para que eu pudesse reverter a cirurgia com a ajuda da Justiça. Era o mínimo que o Estado poderia fazer por mim porque até hoje estou com a laqueadura. Já ganhei a causa na primeira e na segunda instâncias, mas ainda não recebi nada do Estado. Essa demora nos incomoda muito.

Vontade de ter um filho permanece

A minha privacidade foi totalmente invadida. Não sei o que passou pela cabeça do médico. Em nenhum momento, antes da cirurgia, eu falei sobre laqueadura para ninguém. Eu não faria laqueadura nem se meu filho que morreu ainda estivesse aqui. Existem outros métodos para evitar uma gravidez.

Com tudo isso e depois de tanto tempo, a gente se sente enganado e lesado. Não conseguimos ter a criança que sempre desejamos. E não foi uma decisão minha de que me arrependi depois, mas dos médicos.

A vontade de ter um filho e realizar esse sonho ainda permanece. Mas, conforme o tempo passa, esse desejo diminui porque, pela minha idade, poderá ser uma gravidez de risco. Então, tenho muito medo de não ser mais viável. Ainda não conseguimos realizar esse sonho para o nosso relacionamento, mas estamos correndo contra o tempo enquanto espero que a justiça seja feita."

[Universa questionou o governo do Acre sobre o procedimento sem autorização realizado em Cinara, mas não obteve resposta até a conclusão desta reportagem. O advogado da dona de casa, André Marques, informou que o estado recorreu da decisão do judiciário local ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) e que ainda não existe data para o recurso ser analisado pela corte.]