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Mulheres protagonizam um mundo em evolução


"Me chamam de vagabunda por jogada ruim": machismo e lgbtfobia entre gamers

Gabriella Senra evita falar que é mulher nos chats dos jogos para não ser xingada - arquivo pessoal
Gabriella Senra evita falar que é mulher nos chats dos jogos para não ser xingada Imagem: arquivo pessoal

Ana Reis

Colaboração para Universa

03/12/2020 04h00

De acordo com a Pesquisa Game Brasil 2020, 53,8% dos gamers são mulheres. Outro estudo de 2020 do Reino Unido, feito pela UK Games Industry Census Report, mostra que 21% das pessoas que jogam no país são da comunidade gay [via Pink News*]. Já uma pesquisa realizada pelo Youtube, em 2017, mostrou que o público LGBT+ é maior do que a média no Brasil.

Apesar de números tão representativos de visibilidade e diversidade no mundo dos games, ainda há muito preconceito. Universa conversou com jogadoras para ouvir o que elas têm enfrentado na atividade, considerada esporte para uns e entretenimento para outros.

Gabriella Senra, de 27 anos, joga desde os 15 anos, se identifica como panssexual e conta que se esquiva de falar sobre sua sexualidade, embora já tenha presenciado homofobia nos chats de conversa. Também evita falar que é mulher. "Evito dialogar tanto em chat quanto por voz. Pois diversas vezes passei por situações ruins. É bem comum ser xingada de 'puta' e 'vagabunda' por uma jogada ruim, ou por não seguir as "ordens" de outro jogador."

Nick Mitrava - arquivo pessoal - arquivo pessoal
"Tem que mostrar que aquele espaço é seu e você vai continuar nele", diz a drag queen Nick Mitrava
Imagem: arquivo pessoal

Os ataques frequentes, por exemplo em lives, podem desanimar as pessoas da comunidade LGBT que estão jogando. A streamer Nicky Mitrava, de 22 anos, drag queen de Fortaleza, é conhecida no meio e tem mais de 60 mil seguidores no Instagram. Ela opina: "[Os homens] acham que ninguém tem mais direito a aquilo se não eles. Em nenhum momento você vai me ver abaixar a cabeça e começar a chorar se eu receber um ataque desse. Tem situações que a gente consegue resolver num diálogo calmo, mas quando alguém chega pra te ferir, não adianta dialogar. Você tem que mostrar que aquele espaço é seu e você vai continuar nele e continuar existindo."

Lucroft, mulher transgênero, é streamer de 23 anos e natural de Recife. Ela, que acumula mais de 20 mil seguidores no Instagram, também relatou ter sido bastante xingadas nas lives.

"As mulheres dominam os jogos sim, mas ficam meio escondidas. Talvez até por conta do tabu [de existir "coisa de menina e de menino"]. A mulher não é levada muito a sério. Quando você é trans [também] é complicado, porque você vai enfrentar o preconceito do machismo duas vezes."

Afinal, o que é ser gamer?

Consoles, PC, celular? há diversas formas de jogar, e muitas das pessoas que jogam não necessariamente se dizem gamers. Uma entrevistada, que gostaria de ser chamada pelo nome fictício Mariana (32), é lésbica, designer de jogos e critica o termo gamer: "Eu considero a palavra gamer de viés comercial. É uma coisa muito de nicho. E acho que a maioria das mulheres também não se consideram gamers, porque não fazem parte desse nicho." De fato, segundo a PGB20, apenas 23,3% das mulheres se consideram gamers, mesmo se estão em maior quantidade. Isso pode se dar pelo fato de que não são simbolizadas lá dentro.

"Geralmente falar de gamer é lembrar do homem hétero, geralmente branco, grosseiro, machista. Não acho que me representa", comenta Gabriella.

De acordo com Mariana, "as pessoas que produzem jogos estão vendo que os gays e as mulheres estao jogando. "[Os homens héteros] se veem em um nicho de mercado que era exclusivamente para eles e de repente está diversificando", e por isso podem se sentir ameaçados.

E ao ser mulher e/ou LGBTQ, a pessoa se vê naquele estigma de ter que ser sempre boa e nunca falhar. "Tem esse lado, se você é mulher, se você é lésbica, faz parte de qualquer segmento que não seja o "gamer", você tem obrigação de jogar bem pra não sujar a imagem do seu grupo todo, por exemplo: 'Ai, joga mal porque é mulher.' A gente não está livre em lugar nenhum", reflete Mariana.

Nicky acrescenta. "[Dizem] 'ah, é mulher, mas mulher não é boa nos jogos. Ah, é gay, então não é bom' sendo que todo mundo tem a mesma capacidade."

Representatividade dentro dos próprios jogos

O jogo "Life Is Strange: Before de Storm" (2017), continuação do "Life Is Strange" de 2015, ganhou bastante notoriedade entre lésbicas, bissexuais e afins, que se viram representadas nas personagens. Os bastidores do namoro de Chloe Price e Rachel são explorados e o relacionamento posterior da protagonista com Max se desenvolve. "Se esse tipo de jogo tivesse aparecido quando eu era mais nova, eu teria me descoberto antes. Retrata muito bem um envolvimento adolescente e aborda questões sociais e ambientais", explica Senra.

Mas não é de hoje que a diversidade nos jogos vem crescendo um pouco. Em 2013, o jogo "The Last Of Us: Left Behind" apresentou a relação homoafetiva entre Riley e Ellie. Em 2014, a desenvolvedora de jogos BioWare criou seu primeiro personagem transgênero (Krem) para o "Dragon Age: Inquisition". Além disso, o "Mass Efect: Andromeda", também da BioWare, põe a opção de personagem customisável e dá para escolher gostar de pessoas do mesmo sexo. Em 2016, o roteirista de "Overwatch", Michael Chu, confirmou que a Tracer se identifica como lésbica. O mesmo aconteceu com League of Legends dois anos depois: Neeko foi a primeira personagem do game a ser revelada como lésbica. Aos poucos, os LGBTs ganham esse protagonismo dentro e fora dos jogos.

"Representatividade dentro e fora dos jogos proporciona um porto seguro", diz Lucroft - arquivo pessoal - arquivo pessoal
"Representatividade dentro e fora dos jogos proporciona um porto seguro", diz Lucroft
Imagem: arquivo pessoal

"[Essa representatividade dentro e fora dos jogos] proporciona um porto seguro para quem é do meio LGBT", fala Lucroft. "Poderia ser melhor, mas a questão é continuar lutando. A gente vem colhendo frutos, demonstrando que a gente está presente no meio. Ganhamos nosso espaço e tem como ganharmos mais ainda", termina.

Contudo, a representatividade pode cair no estereótipo. Life Is Strange, por exemplo, apesar de ter sido um jogo bem aclamado, "cai muito naquela narrativa da lésbica trágica. Cai muito naquilo que o amor entre duas pessoas do mesmo sexo tem que pagar um preço alto por ele", reflete Mariana. "Ser LGBT é complicado por causa disso. Quem tem pouca [representatividade] acaba se contentando com qualquer migalhinha. Às vezes a história é ruim, mas porque tem um pouquinho de representatividade você fica: 'ai meu Deus, é maravilhosa!", Mariana destrincha.

Jogos como uma forma de escape

Apesar do preconceito no meio, muitas pessoas LGBTs jogam para escapar de uma realidade ainda pior. Se você não dá indícios de ser mulher ou homossexual, pode se poupar "um pouco" dos ataques:

"Dá pra ser discreta no ambiente dos jogos. É um pouco estar no armário. É uma forma de se proteger. Fugir um pouquinho do mundo preconceituoso. Mas não é como se o ambiente fosse inclusivo, mas é um ambiente no qual você consegue esconder suas diferenças", afirma Mariana.

A designer continua: "Eu, por exemplo, posso jogar um jogo online, jogar bem e só conversar com as pessoas por texto, e ninguém saberá que sou mulher. Dentro do jogo você é igual a todo mundo. Minorias em geral costumam ter uma atração por esse ambiente por ser um lugar onde você pode dar uma respirada dos preconceitos que você sofre lá fora. Eu jogo World of Warcraft, sou um elfo roxo e ninguém sabe que eu sou mulher ou homem. (...) Só falo que sou lésbica quando já conheço as pessoas, jogo junto há muito tempo [com elas]."