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47% das brasileiras passam por assédio sexual no trabalho; leia relatos

Quase de metade das brasileiras já sofreu assédios no trabalho - Getty Images/iStockphoto
Quase de metade das brasileiras já sofreu assédios no trabalho Imagem: Getty Images/iStockphoto

Camila Brandalise e Mariana Gonzalez

De Universa

05/12/2020 04h00

Apesar de revoltantes, os detalhes trazidos pela revista Piauí das denúncias de assédio envolvendo o humorista Marcius Melhem, quando ainda trabalhava na TV Globo, soam como algo já conhecido para muitas mulheres. Mais especificamente para, no mínimo, metade delas: segundo uma pesquisa divulgada pelo LinkedIn e pela consultoria de inovação social Think Eva, em outubro, 47% das brasileiras já foram vítimas desse tipo de crime praticados por chefes.

Assim como a humorista Dani Calabresa, que teria denunciado Melhem para a Globo, outras vítimas relatam ter passado por constrangimentos do tipo: tentativas forçadas de contato sexual, mensagens insistentes, comentários inadequados e silenciamento por parte de superiores. Além de terem que enfrentar o descaso da própria empresa quando decidem fazer uma queixa.

Leia abaixo os depoimentos de duas mulheres que passaram enfrentaram situações de assédio sexual.


"Chefe perguntou se pensava em fazer amor com ele, neguei e fui demitida"

"Trabalhava há dois anos no setor administrativo de uma grande empresa em São Paulo até que passei em um processo seletivo para ser coordenadora nacional administrativa, em 2011. Fazia meu trabalho e ia embora pra casa todos os dias feliz da vida porque estava em um bom cargo e recebia um bom salário.

No fim de 2017, fizemos um happy hour entre as áreas da empresa para a confraternização de fim de ano. Ali começou o meu tormento. Nesse dia, por volta das 19h, um dos diretores me mandou mensagem pelo Whatsapp perguntando se a confraternização estava acontecendo ainda, e eu respondi que sim, que o pessoal estava lá. Ele me respondeu dizendo que ele e o presidente da companhia estavam indo para lá. Até aí, tudo bem.

Eles chegaram, cumprimentaram todo mundo e ficaram por lá. Percebi olhares do diretor para mim, porém fiquei na minha e fingi que não percebi. Outras colaboradoras vieram me perguntar se eu estava percebendo as olhadas, e eu simplesmente ignorei.

Na hora de ir embora, eu dei tchau pra todo mundo e avisei que eu estava indo para o estacionamento pegar meu carro. Perguntei se alguma menina queria carona e, quando estava saindo, esse mesmo diretor, que estava me comendo com os olhos, disse que ia embora também. Eu olhei para uma das minhas colegas de trabalho e pedi que ela me acompanhasse até o estacionamento.

No caminho, ele solta a seguinte frase: 'Você sabe que, para continuar na empresa, só vai depender de você, né?'. Respondi: 'Claro, só depende do meu trabalho', e morreu o assunto. Cada um pegou seu carro e foi embora. Mas achei estranho.

O tempo passou, esse diretor sempre ia na minha mesa e ficou muito simpático. Eu conversava com ele e achei que o que aconteceu na confraternização tinha sido coisa da minha cabeça. Três meses depois, ele me mandou uma mensagem pelo Whatsapp perguntando se eu já tinha imaginado fazer amor com ele. Na hora, dei risada e não acreditei naquilo. Não era possível que ele estivesse me mandando aquela mensagem.

No ato, respondi que ele estava confundindo as coisas, pois eu o via apenas como um amigo, um colega de trabalho, nada mais. Ele pediu desculpas, mas disse que já havia sonhado comigo várias vezes e que, como isso passou pela sua cabeça, talvez tivesse passado pela minha também. Eu li aquilo e fiquei incrédula.

Um mês se passou e, sem motivos, fui desligada da empresa. Fiquei chateada, estava há seis anos na companhia, tinha um futuro promissor pela frente. Nem lembrava mais desse episódio até que minha namorada me disse que eu fui desligada porque não fui para cama com meu diretor. Aquilo caiu como uma bomba, não tinha pensado nesse motivo. Fiquei muito abalada, sem rumo e não acreditando no que tinha acontecido. A gente pensa que essas coisas acontecem com os outros, nunca com a gente.

Depois de um tempo, mandei uma mensagem pelo Whatsapp para ele e disse que o que ele tinha feito comigo era assédio sexual, que na época eu não tinha entendido, mas que agora entendia o porquê de terem me mandado embora por ter me negado dormir com ele. Ele leu a mensagem e, na hora me bloqueou. Ali me dei conta de que virei parte da estatística.

Passados alguns dias, procurei um advogado, mostrei as mensagens, e ele disse que esse era mais um caso de assédio sexual que ele ia pegar. Hoje travo uma batalha na Justiça contra a empresa.

Eu me sinto fragilizada. Estou desempregada, pois, desde o ocorrido, minha autoestima caiu. Às vezes, me pego triste e chorando por conta do emprego que perdi por não ter cedido a um cafajeste, mas o que me fortalece é que tem pessoas ao meu lado que me colocam para cima e me fazem levantar a cabeça. Sou, sim, parte da estatística, porém não vou me calar, eu tive coragem de expor, estou tendo coragem de lutar e não vou parar por aqui. A minha voz não é solitária, representa a de muitas mulheres."

Geane Cristina Nunes, 43, coordenadora administrativa

"Fui assediada e silenciada, mas levei denúncia até o fundador da empresa"

mulher silhueta - iStock - iStock
Imagem: iStock

"Há dois anos, eu trabalhava no SAC [Serviço de Atendimento ao Consumidor] de uma empresa. Lá, eu tinha contato direto com o pessoal da expedição, que ficava no galpão separando os pedidos. Falava com eles por telefone e WhatsApp.

Um dia, fiz uma ligação para o Pedro*, que era coordenador da equipe de expedição, para perguntar sobre o pedido de uma cliente. Eu tinha cortado o cabelo naquela semana, e ele falou 'Vi que você cortou o cabelo, tá muito bonita'. Agradeci e continuei falando sobre trabalho. Ele insistiu: 'Você tá muito bonita'. Eu, já meio desconfortável, decidi cortar: 'Obrigada Pedro, mas agora preciso conferir esse assunto com você'.

Até que ele me interrompeu e disse: 'Eu pegava'. Respondi: 'Não, não pegava porque eu estou no meu ambiente de trabalho e não tenho interesse'. Ele continuou nesse tom, dizendo que me pegaria sim porque ele era 'um macho alfa'. Fiquei muito constrangida, disse que ele estava me desrespeitando e pedi que parasse. Ele riu e dava pra ouvir mais risadas no fundo, acredito que estava no viva-voz, algo assim.

Essa situação me deixou com medo. Comentei com a mulher que trabalhava do meu lado, e ela insistiu que eu contasse tudo para a direção da empresa. Decidi contar para o gerente, que prometeu conversar com o Pedro, mas nunca me retornou, e nada aconteceu. Esperei duas semanas.

Tinha medo de ir sozinha para o galpão da expedição, onde ele trabalha, sentia que ele ficava me olhando o tempo todo. Quando precisava ir até lá, pedia para uma colega me acompanhar.

Decidi falar com o dono da empresa. Contei tudo o que aconteceu, disse também que tinha procurado o gerente e que nada tinha acontecido. Disse que me senti silenciada e que esperava um retorno. Ele ficou visivelmente incomodado, perguntou se eu me sentia confortável em conversar cara a cara com os dois [o assediador e o gerente que não levou o caso adiante] e eu disse que sim.

Tive a oportunidade de confrontá-lo e dizer que ele estava errado. Na frente do dono da empresa, ela pediu desculpas, chorou e disse que não assediaria mais a mim e nem a outras mulheres. Ele continuou trabalhando, mas foi demitido uma semana depois, por outro motivo [não relacionado a assédio].

Fico chateada que o fator determinante para a demissão não tenha sido o que ele fez comigo, mas acredito que a minha denúncia impulsionou que a saída dele da empresa num segundo momento. Acredito que, naquele momento, o dono da empresa quis resolver a situação, não acho que agiu por mal, e foi bom ter confrontado o Pedro*. Mas, como mulher, acho que esse tipo de coisa não merece segunda chance. Se eu fosse diretora, não teria conversa.

Foi uma situação horrível. O que mais me incomodou, além do assédio, foi o fato de ter levado o que aconteceu para um superior e ter parado ali. Acho que eu fui sortuda porque consegui me posicionar e contar para duas pessoas, dois homens no caso, até que tudo fosse resolvido. Ainda bem que eu consegui fazer isso, mas muitas mulheres não conseguem."

Era um galpão, cheio de caixas, onde só trabalhava homem, e eu tinha que ir até lá com frequência. O que poderia ter acontecido comigo ou com outra mulher da empresa se eu não tivesse falado? Não sei.

Julia*, 24 anos, relações públicas; os nomes foram trocados para proteger a identidade da vítima