Assédio, descrédito e censura: atrizes contam como comédia ainda é machista
Denúncias de assédio sexual, como as envolvendo o ex-diretor da Globo Marcius Melhem, são uma queixa entre tantas feitas por mulheres no meio da comédia brasileira. Por trás do riso, da piada e das brincadeiras, elas afirmam, há um universo majoritariamente masculino que oprime, dita o que elas podem falar e menospreza o trabalho alheio, dependendo do gênero.
"Ouvia que não poderia ser engraçada pois sou mulher", escreveu a roteirista e comediante Carol Zoccoli, do programa "A Culpa é da Carlota" (Comedy Central), em um texto publicado no Medium sobre o machismo na área. "Pra cada risada que eles ganham, eu tenho que ganhar três só pra ser considerada boa. E eu sei que nunca vou ser considerada ótima. O panteão é deles." A também comediante Dadá Coelho repercutiu o texto de Carol no Twitter e contou que já teve trabalho cancelado por ser "nordestina demais".
Universa conversou com Carol e outras duas humoristas sobre as dificuldades e os abusos que mulheres sofrem na comédia.
Carol Zoccoli: "Homens se incomodam se a gente ganha mais risada do que eles"
"A comédia stand-up é uma profissão que não tem RH, então não tem onde você fazer uma queixa sobre um comportamento inadequado. A tendência é engolirmos e, tristemente, admitirmos que faz parte do trabalho.
Os comediantes até hoje têm um hábito (apesar de muitos felizmente já o terem abandonado) de nos chamar ao palco fazendo um comentário sobre nossa aparência. Ou sobre nosso suposto comportamento sexual. É mais ou menos assim: 'Agora eu vou chamar ela, uma gostosa que eu já comi muito e posso garantir que é o melhor boquete de São Paulo, Carol Zoccoli'.
Na indústria do entretenimento em geral ainda existe uma cobrança com relação à aparência de uma mulher. Então, em projetos de humor na TV, já ouvi que era gorda, que 'precisamos de uma gostosa no elenco'. Em um projeto que estava ajudando a criar, me disseram: 'Você serviria para apresentar o jornal porque a bancada tamparia o seu corpo'.
Já ouvi que 'mulher não é engraçada'. Nunca pensei que comédia não pudesse ser meu lugar, então quando ouvi isso eu não acreditei. Segui. Mas percebi que teria um obstáculo à minha frente.
Todas essas coisas colocam as mulheres um pouquinho para trás, e, juntando todas elas, o quão desigual não acaba sendo as condições de trabalho?
Às vezes vem até da plateia. Eu estava fazendo show em Toronto [Carol mora no Canadá desde 2007], em inglês, disse que era brasileira e um cara da plateia gritou, de uma maneira agressiva: 'Gostosa!' Meu sangue subiu e eu queria retrucar. Mas como ninguém tinha entendido o que ele tinha falado em português eu ia ter que dar uma volta muito grande para explicar o que estava acontecendo e eu deixei para lá.
Eu acho que muito disso é a estrutura social com a qual a gente cresceu. O homem não é educado para ter empatia e é reprimido se expressar afeto. Então eles não cresceram acostumados a entender a mulher. A considerar a mulher como igual. Às vezes, algo que na cabeça dele é uma dica, como sugerir para uma colega que ela não deveria fazer piadas sobre menstruação, vem daí. Muitas vezes o cara acha que está ajudando, mas ele está passando como um trator por cima da nossa experiência. Os comediantes LGBTQIA+ sofrem a mesma coisa.
E em uma profissão que é predominantemente masculina, acho que é difícil para alguns caras verem que tem uma mulher indo melhor que ele no que ele faz. Eles se incomodam se a gente ganha mais risada do que eles.
Uma vez um cara me repreendeu: 'Você foi bem, mas falou muito palavrão'. Eu literalmente tinha falado dois palavrões em 15 minutos de apresentação. Isso isoladamente não é nada, mas a frequência com que coisas como essa acontecem é o que faz você se sentir uma intrusa no meio. É um tom de 'é óbvio que eu sei mais do que você'.
Existe toda uma estrutura para um show de comédia acontecer, e existem muitas mulheres trabalhando nessa estrutura: produtoras, agentes, garçonetes dos comedy clubs. Essas mulheres também estão sujeitas a sofrer assédio. É impossível pensar na comédia sem mulheres em cima do palco ou por trás das cortinas, nós sempre estivemos presente. É hora de termos o mínimo, que é um ambiente de trabalho seguro.
Carol Zoccoli, comediante e integrante do programa "A Culpa é da Carlota", do Comedy Central
Dadá Coelho: "Chefão cancelou alegando: 'Você é muito nordestina para ter um quadro no 'Fantástico'"
A comediante Dadá Coelho, que trabalha com Carol no "A Culpa É da Carlota", do Comedy Central, repercutiu o texto da colega no Twitter, reforçando, com relato próprio, os diversos constrangimentos que mulheres passam. "Passou um filme aqui", escreveu, após ler o que Carol havia escrito.
"Só eu, Deus e meu biógrafo sabem o que passei. Tive um quadro no 'Fantástico', "A Gente Ganha Pouco Mas se Diverte ". Chefão cancelou alegando: 'Você é muito nordestina para ter um quadro no 'Fantástico'. Chorei copiosamente lágrimas velhas."
"Como que você faz o caminho de volta ao ser demitida com um argumento desses?", diz ela na rede. "E mais: o machismo nunca escolheu gênero. É um ideal compartilhado por homens e mulheres. Um acordo sombrio. Tem que acabar o machismo. Sobretudo o assédio moral praticado por mulheres chefonas que muitas vezes reproduzem o machismo praticado pelos homens."
Dadá ainda dá o exemplo de uma situação que viveu, em que seu trabalho foi avaliado por uma apresentadora da Globo. "Disse que não queria trabalhar comigo porque eu era muito inteligente e ela preferia o homem que estava concorrendo comigo."
Bruna Braga: "Machismo é tão enraizado que homens priorizam humoristas com quem querem transar"
"O machismo está tão enraizado na comédia brasileira que os homens priorizam as meninas com quem eles querem transar, se relacionar. Uma vez, fui fazer um show em um lugar e disse para o produtor que ele tinha demorado para me chamar, que a fulana tinha ido quatro vezes já. Ele disse: 'É porque ela é quem eu quero comer'. E ele ainda esculhambou a moça.
O assédio moral, por ser mulher, é forte. Não conheço uma que não tenha passado por isso. Começa quando a gente vai pro palco e muito comediante torce o nariz, já debocha. Tem essa coisa de limitar o que a gente pode falar.
Tem cara que sobe no palco e gesticula um ato sexual, e as pessoas acham hilário. Metade dos comediantes homens que conheço fala de sexo, de vida de casado e de puteiro. Tem cara de 40 anos falando de peido, cocô. Mas se a mulher falar de menstruação, aí reclamam que ela só fala coisa de mulher.
A cobrança é três vezes maior sobre nós. A comédia é linda, me devolveu a vontade de viver, sou muito feliz fazendo o que faço, mas tem muito problema. E é um meio que se diz muito evoluído, afinal, a gente sobe em um palco para dividir ideias. Mas ainda tem muito o que evoluir porque não nos deixam falar.
Somos silenciadas e interrompidas. Na semana passada, um homem na plateia me interrompeu. Estava bem na minha frente. Disse: 'Brinca comigo para você ver o que acontece', muito agressivo e com uma garrafa na mão. Pedi para ele sair, tive que botar para fora.
"Sofri abuso de um comediante famoso que passou a me prejudicar profissionalmente"
Em 2018 eu trabalhava com vários comediantes em um grupo. Comecei a me relacionar com um deles. Não namorávamos, mas ele aparecia com outras mulheres e, na segunda vez que isso aconteceu, disse para ele que não rolaria mais nada entre nós. Também era gordofóbico, dizia que a única coisa que eu tinha de bom era ser magra mas que estava ficando gorda e feia.
Ele começou a me prejudicar profissionalmente, me caluniar. Portas foram se fechando e, só depois, descobri que ele estava queimando meu trabalho, dizendo que eu não era boa, espalhando para outras mulheres que eu falava mal delas.
Só que ele é conhecido, tem muitos seguidores, tem fama, a galera trata ele como rei. Esse ano, durante a terapia, me lembrei que ele tirava a camisinha no meio do sexo. Sabia que não era certo e me machucava muito, mas só agora entendi que era crime.
Depois ainda descobri que ele praticou esse abuso e outros com várias mulheres, uma foi contando para a outra e fizemos até um grupo no Whatsapp para falar do que sofremos.
O que me dói é, hoje, ver gente que chorou comigo quando eu contei a história puxando o saco dele, fazendo live.
Toda vez que tentei falar, me silenciaram. Já me taxaram de maluca, disseram que eu estava 'dando problema'. Recentemente me pediram para contar o que aconteceu em um grupo do Whatsapp, mas ele também estava presente. Não é assim que funciona. Além do mais, eu estou denunciando esse assédio há meses, precisou ter uma bomba com uma mulher branca [referindo-se ao que aconteceu com a humorista Dani Calabresa] para me ouvirem.
Se a comédia é abusiva com mulheres em geral, com as negras, é cruel.
A branca sofre assédio moral, sexual, mas está nas casas de show trabalhando. Eu passo por tudo isso e não estou ocupando esses lugares, tenho que implorar para estar lá. Parece que estou sempre com dois pontos a menos: ser mulher e preta.
Bruna Braga, 27, é roteirista da Globo e humorista do canal Comedy Central e do Laboratório Fantasma
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Lorena Comparato: "Colega do mesmo projeto ganhou cinco vezes mais do que eu"
"Tem alguns temas que acho mais pontuais quando falamos sobre machismo no humor: salário, oportunidades, autoestima profissional e objetificação. Quando se é mulher, são questões que aparecem de maneira bem diferente.
Teve uma vez que descobri que um homem com a mesma idade que eu, no mesmo projeto, fazendo a mesma coisa, ganhou cinco vezes o que eu ganhei. É a reprodução do que ouvimos a vida inteira: que homem tem mais valor, que ser homem é melhor.
Para você ter uma ideia, fundei o grupo de teatro Cia de 4 com outras três mulheres, há dez anos. Até hoje nos chamam de 'meninas'. 'Ai, que legal, quatro meninas, vocês fazem humor? Que fofas'. Esse tom é muito frequente.
A gente se juntou porque queria mais protagonismo feminino, mais histórias com arco dramático de mulheres, parar de ser escada para os caras.
Mas ainda tem um lugar para a gente que é assim: 'Vocês são mulheres, então vão fazer humor para mulheres'. O pior é quando dizem que é de 'mulherzinha'. Já o humor masculino, esse pode ser universal.
Nós gravamos pílulas [vídeos curtos] pro canal E!. Em um deles, falávamos palavrões, mas em cima tinha o som do 'piiiiiii'. Então era 'pega a piiiii da caneta', 'filho da piiiiii'. Vários comentários nas redes sociais apareceram chamando a gente de desbocadas, dizendo que não gostavam das nossas pílulas.
Tudo isso bate na autoestima profissional. As pessoas falam muito da necessidade do reconhecimento, mas dão pouca oportunidade. Falam que são antimachistas, antirracistas, mas na hora de contratar, contratam os homens brancos.
Faço seriados de humor em que vivo mulheres objetificadas. Amo meu trabalho. Mas me incomoda? Sempre. Também é um lugar de liberdade, onde reafirmo que o corpo é meu, faço o que quiser com ele.
Já sofri muito assédio, principalmente moral, por ser mulher.
Uma vez, um diretor homem olhava para mim pelada enquanto gravava uma cena e disse: 'Não liga que eu ajeito tudo depois, na pós [produção].
Respondi que não queria que ajeitasse nada no meu corpo, ele falou que então iria colocar celulite e estria.
Mas esse caso é a ponta do iceberg. Meu maior medo [em falar sobre os casos de assédio que sofreu] é que esses caras têm muito poder. Tenho medo de mexer com gente grande porque sou peixe pequeno, quem está no topo ainda são esses caras, brancos, heterossexuais.
Eu passei anos da minha vida sem saber que o que passei era assédio, moral e sexual. Quantas vezes eu não fui assediada e ri, ou fiquei parada, sem reação. É um jogo de poder que beira o sadismo.
O que considero importante para mudar isso são mulheres ajudando umas às outras. Tem várias me incentivando o tempo todo, me deram a mão em diversos momentos. A gente, no grupo, também tenta fazer isso. Se vamos subir, queremos que outras subam com a gente.
Lorena Comparato, 30, é atriz e humorista, participou da série "Homens?" e é uma das fundadoras do grupo de teatro Cia de 4
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