Ilona Szabó fala de exílio e ameaças à família: "Brasil está doente"
No início do governo Jair Bolsonaro, a empreendedora cívica e ativista Ilona Szabó viveu uma experiência peculiar. Ela foi nomeada pelo então ministro da Justiça Sergio Moro para compor um conselho voluntário de políticas públicas. A nomeação causou um furor nas redes sociais motivado principalmente pela hashtag #ilonanao. No dia seguinte, atendendo apoiadores, o presidente recém-empossado a "demitiu" do cargo.
Depois de se tornar "uma pessoa nomeada pelo próprio presidente como inimiga do governo", ela virou alvo de ameaças anônimas que citavam detalhes de sua vida íntima, e-mails e recados intimidadores. Decidiu se mudar para o Canadá, onde vive hoje com a filha de 6 anos e o marido. "Eu não me perdoaria se acontecesse algo com alguém da minha família", explica ela, ao falar do convite para morar no exterior.
Lá, se dedicou à pesquisa e análise da conjuntura brasileira e de países que vivem situações semelhantes, o que ela chama de fechamento do espaço cívico em um ambiente onde a democracia está sob forte risco. O resultado dessa reflexão é o livro "A Defesa do Espaço Cívico", recém-publicado pela editora Objetiva.
lona é uma das principais representantes da sociedade civil na luta pela criação e manutenção de políticas públicas que defendam os direitos humanos e a igualdade social e, sobretudo, de gênero. Depois de quase uma década trabalhando em instituições como a Viva Rio, Ilona decidiu fundar o Instituto Igarapé, que atua no desenvolvimento de pesquisas e dados para políticas públicas e parcerias nas áreas de segurança, clima e desenvolvimento. A seguir, trechos da conversa com ela.
UNIVERSA: Qual foi o impacto da sua saída do conselho voluntário de políticas públicas, em 2019?
ILONA SZABÓ: Além da questão da intolerância, caiu a ficha de que não haveria possibilidade de manter a troca e a construção coletiva que a gente vinha fazendo, independentemente de quem estava no governo. Há 20 anos, a gente senta com ministérios e cargos técnicos. Meu trabalho sempre foi fazer críticas, mas não só: a gente ajuda com soluções. Depois disso, eu passei a ser uma pessoa nomeada pelo próprio presidente como inimiga do governo. E o custo é bastante grande. Não só o virtual, que continua até hoje. Tem um custo reputacional, que é grande para o tipo de trabalho que eu faço. Dificultou nossa relação até com quem apoia o nosso trabalho. Eram pessoas que precisavam da interlocução com o governo, então me receber era como se fosse uma afronta ao governo.
E o que você fez para tentar diminuir esses danos?
Saí um pouco do debate para diminuir a publicidade negativa sobre o nosso trabalho, mas, quando voltei, ainda em 2019, comecei a receber não só o ódio retórico nas redes, mas ameaças em e-mails do instituto, no meu pessoal e uma série de outras coisas que eu tenho muita dificuldade de colocar de uma forma concreta porque não tenho como provar. Mas dá para dizer o seguinte: as estratégias de intimidação saem das redes, vão para a vida pessoal. Inclusive tem estratégias que são usadas de fato para calar, são intimidações muito sérias. Comecei a não ter condições de avaliar os riscos.
Eu recebia recados dizendo que eu e minha equipe estávamos grampeadas, recebia fotos com corpo, citavam a minha família, coisas pessoais. E eu não me perdoaria se acontecesse algo com alguém da minha família.
Aí eu recebi um convite para fazer um fellowship fora do Brasil. E, bom, veio a calhar. Eu usei esse tempo para entender melhor o que estava acontecendo no Brasil, o fechamento do espaço cívico, que é essa esfera entre o estado, a família e os negócios onde os cidadãos se organizam, debatem e agem para influenciar as políticas públicas e o rumo do país.
Os grupos que mais atuam nesse espaço, para a gente poder concretizar um pouco, são lideranças da sociedade civil, jornalistas, acadêmicos, artistas, lideranças indígenas, minorias, pessoas que estão formando esse debate. Criamos uma maneira de fazer um alerta do que já está acontecendo, de como a temperatura vai subindo no Brasil e aonde a gente pode chegar se nada for feito.
E o que exatamente você identificou?
Tanto no Brasil quanto em países com lideranças que têm um perfil populista autoritário, esses grupos [que atuam no espaço cívico] vêm sendo atacados de diversas formas, mas a expressão mais visível é essa digital com a intenção de calar, de suprimir o dissenso, o debate plural. É óbvio que isso vai corroendo algo que é muito fundamental na construção das políticas públicas, que é a troca. Em geral, quando a gente observa o que acontece nesses lugares, no primeiro mandato essas estratégias que eu descrevo - censura, intimidação e assédio, restrição de espaços de participação, restrição de direitos políticos - vão passando de nível. Tudo vai se agravando.
E como você avalia a situação do Brasil?
A gente está num momento bastante sério, que chamo de ameaças retóricas e extra legais, uma zona cinzenta em que não conseguimos rastrear os atores porque não temos como materializar em provas.
Só que a gente começou a ver algo diferente, com mais força nos últimos dois meses. Representantes do aparato de segurança pública e justiça criminal começam a usar instrumentos legais, de forma ilegítima, para perseguição política.
Eu posso citar, por exemplo, um delegado indiciando o Felipe Neto num inquérito, que, de acordo com vários juristas, não tem pé nem cabeça. Está usando um instrumento legal, que é o indiciamento, mesmo sabendo que aquilo ali não tem chance de ir para frente. Mas é uma forma de intimidação, mais grave do que só o retórico. Tem vários grupos de apoio ao governo usando essa estratégia de orquestração de processos contra formadores de opinião e jornalistas. E o que acontece com essas pessoas? Elas recebem dezenas de processos do Brasil inteiro e têm que responder a eles. Para mim, é uma cruzada de linha, a gente avançou no nível de gravidade.
E estamos com dificuldade como sociedade de identificar esse quadro?
O primeiro semestre de 2019 foi muito difícil, ainda não estava claro para muita gente que esse era o modus operandi. O que eu acho muito importante dizer é que o impacto desse "não debate", dessa "não troca" e dessa perseguição de pessoas já é real na vida de todos. Para além das políticas públicas, algo que está acontecendo no Brasil num crescente é a fuga de cérebros. A gente deixa de ser uma democracia liberal no sentido não econômico, mas de direitos. É uma estratégia mesmo de calar e tirar figuras que tenham opiniões diferentes do debate.
A publicação do livro é, de certa maneira, uma forma de enfrentamento?
Acho que a minha vontade foi: estou fora do Brasil, me sinto mais segura, estudei esse fenômeno, entrevistei um monte de gente e estou pronta para explicar o que está acontecendo, para ajudar a formar coalizões e, honestamente, tentar retomar o mínimo esse espaço porque ele é nosso, não é do governo, é dos cidadãos. Pensei: não estou sozinha, preciso formar coalizões. É a hora de se unir. E estou fazendo essa chamada inclusive para as instituições apoiarem nosso pleito, porque está difícil ter apoio institucional no país. E o momento é agora, porque, em geral, no segundo mandato, se esses governos são reeleitos, as restrições são muito maiores.
E o que sugere que cidadãos façam?
Precisamos escolher lideranças responsáveis, votar melhor, entender melhor o que é o perfil de alguém que vai para o serviço público. A gente está num momento de múltiplas crises no mundo, os desafios são muito grandes. Nósm cidadãosm temos que entrar no jogo democrático. Tem muitas formas de fazer, mas essa opção de não fazer nada vai nos levar para um lugar que eu acho que é horrível para todo mundo.
O que há de mais urgente a ser feito?
A gente está na chamada década de ação, para conseguir atingir os 17 Objetivos para o Desenvolvimento Sustentável estabelecidos pela ONU, assim como o Acordo de Paris. São metas que precisam ser atingidas até 2030 e que são chave para o futuro da humanidade. Tem duas questões muito expostas. Uma é a da desigualdade e a outra é a das mudanças climáticas. E elas, obviamente, estão muito juntas quando pensamos nas soluções. E na pandemia isso ficou claro para quem não tinha essa noção da interdependência. Você pode ter mais recursos -obviamente não está todo mundo no mesmo barco, tem gente tentando não se afogar sem colete salva-vidas, e tem gente em transatlântico, muito mais protegido-, mas todos foram tocados de alguma forma.
Você fala em governos liderados por "homens de ferro". O que essas pessoas têm em comum?
Tem uma coisa muito peculiar que é a masculinidade. O presidente Bolsonaro compartilhou um elogio sobre a sua masculinidade feito pelo presidente Putin, que é outro [que se encaixa no perfil]. Não poderia ser mais previsível. Olha, é de chorar, não para rir. Essas lideranças têm uma tendência a querer ter exclusividade no exercício do poder, então são lideranças tidas como carismáticas, mas esse carisma é usado para cometer arbitrariedades, para enfraquecer as outras instituições, para ser o dono de uma verdade absoluta.
A geração nascida a partir do fim dos anos 1970 cresceu com a expectativa de que o futuro seria melhor. Isso acabou?
Eu acho que a nossa geração deu como dada essa consolidação democrática. Eu sempre trabalhei com temas muito difíceis. Eu sabia que faltava muito. A gente não fez a transição democrática na área de segurança pública ainda. Falta muito, olha a questão da violência policial, olha o número de homicídios no Brasil, olha as prisões. Essa área ainda não deu passo em direção de fato a uma democracia de direitos. Mas essas metas e esse olhar começaram a estar incluídos nas políticas públicas. A gente estava caminhando para um lugar.
Até que veio um radicalismo muito forte. Então, honestamente, eu também achava que esse caminho era o da consolidação, não o da destruição. O governo fala que não tem agenda, só quer destruir o que tem aí. Não tem como sustentar isso porque está ficando muito claro o desprezo à vida, seja com a Covid, com as armas, com os acidentes de trânsito, a destruição do meio ambiente.
É um governo muito mórbido, nenhuma empatia, as políticas públicas são destrutivas em um nível visceral. É doente, o Brasil está doente. Então eu acho que a gente vai reagir, precisamos reagir a isso, mas não está dado.
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