Aluna tem matrícula anulada na UFSB sob acusação de fraudar cota para trans
A Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) cancelou a matrícula de uma estudante de Medicina por suspeita de fraude em uma vaga direcionada para pessoas transexuais, travestis e transgênero. Joana Magalhães contou a Universa que é "transgênero fluido e, às vezes, não binário".
"O que isso quer dizer? Eu não me conformo em ter o gênero exclusivamente masculino. Eu transito entre os dois ou nenhum. Mas depois de assumir minha transgeneridade eu tenho transitado bastante no feminino. Por isso uso 'Joana'", definiu.
Procurada pela reportagem, a universidade não respondeu até a publicação da reportagem - que será atualizada caso haja um posicionamento.
Joana diz ter sido a primeira pessoa que começou a cursar Medicina na instituição, por meio de uma vaga destinada a pessoas transgênero, travestis e transexuais. Em 2018, de forma pioneira no país, a UFSB instituiu um processo seletivo com reserva de vagas para esses grupos.
Joana foi aprovada no processo seletivo do edital Nº10/2019, que exige uma declaração de que cursou ensino médio em escola pública e uma autodeclaração de identidade de gênero. Joana foi matriculada e chegou a estudar durante oito meses na universidade.
O cancelamento decorreu de uma denúncia de suposta fraude, que cita o nome masculino que foi registrado no nascimento Joana e que alegava que a estudante não se identificaria como pessoa trans. Segundo documentos enviados por ela a Universa, foi aberta uma comissão na UFSB para apurar o caso.
"Depois de saber do processo e de solicitar o acesso às provas, isso não foi respondido. Em todas as questões, eles foram evasivos, e ninguém me dizia nada. Essa comissão tinha 30 dias para poder existir e depois prorrogaram por 30 dias. Mas isso acabou prorrogado por 8 meses", diz Joana.
Ela tentou recorrer na universidade contra o cancelamento, mas o último recurso, julgado na sexta-feira (11) pelo Conselho Universitário (Consuni), determinou a manutenção da suspensão da matrícula.
"Eu me senti destruída, morta e pisoteada. Porque sabia que além do cancelamento viria uma chuva de ódio. Porque eu vivi com a Joana e vivi uma tentativa de homicídio, digamos assim, pela universidade", declara.
No parecer votado pelo Conselho Universitário (Consuni), que confirmou a decisão de cancelamento da matrícula, enviado por Joana à reportagem, são citadas supostas evidências de que a estudante teria assumido a identidade transgênero somente após a entrada no curso.
"Não poderia haver reparação a uma situação social e subjetiva de violência mediante a constatação de inexistência de uma vivência relacional e social marcada pela condição de pessoa trans que se configurasse anteriormente ao momento da entrada da
estudante no curso de Medicina", afirma a decisão.
No entanto, Joana contesta esse argumento e afirma que já revelava a identidade transgênero de forma mais livre quando morava em Vitória (ES), mas ao voltar a morar em Teixeira de Freitas, enfrentou dificuldades de se assumir socialmente, diante de situações de preconceito.
"Foi um estopim para voltar a usar o nome Joana, porque eu já usava há muito tempo. Quando eu morei em Vitória, dei uma libertada na alma e lá utilizava muito, mas vim embora para cá e tinha todo o contexto de trabalho e de família", explicou.
Ela afirma que, após o cancelamento da matrícula, também passou a sofrer ataques em redes sociais que criticam o uso da barba e também a chamam de "pistoleira". Joana diz que gostaria de retirar a barba, mas enfrenta resistências no contexto social em que vive.
"Uma pessoa só é transgênero quando assume a transgeneridade dela ou sempre foi transgênera e viveu travestida em um corpo a vida inteira? Não significa que tenho características cis, porque tenho que usar barba? Eu queria poder tirar a barba e ter um rosto mais feminino. Eu queria ser livre dos pelos, mas ainda não posso e não tenho estrutura social para isso", justifica.
UFSB se pronuncia
A UFSB confirmou o cancelamento da matrícula da estudante após "reunião extraordinária" realizada na semana passada e disse que todas as etapas do processo foram cumpridas. A Universidade ainda cita que garantiu o "amplo direito de defesa à estudante" e que o caso a investigação foi aberta após um conselheiro da instituição de ensino abrir parecer.
A UFSB ainda aponta que tem o dever de zelar pela vaga aberta, "podendo a qualquer tempo avaliar se a candidatura apresentada representa o segmento".
Leia abaixo a nota completa:
A UFSB adotou o programa de vagas supranumerárias em 2017 (Res. 07/2017) a ampliando em 2018 (Res. 10/2018). Este processo tem origem em debate realizado (que propõe ambas as minutas de resolução aprovadas pelo Conselho Universitário - CONSUNI) na Comissão de Políticas Afirmativas da UFSB (instituída por meio da Resolução 03/2016). O debate a respeito da criação da vaga considerava o grau de marginalização social e e exposição a violência sofrida por pessoas Trans, notadamente Travestis e Transexuais.
A proposição da reserva de vagas considera como instrumento de solicitação da vaga uma autodeclaração apresentada pela/o candidata/o, assim como é feito na maioria das políticas de cotas. Porém o entendimento aplicado desde a resolução 10/2018 é que a universidade tem o dever de zelar pela aplicação deste bem público, podendo a qualquer tempo avaliar se a candidatura apresentada representa o segmento, a partir dos objetivos de reparação e inclusão que deram origem proposição da ação afirmativa própria, a luz da autonomia da universidade.
Em virtude da necessidade de acompanhar sua política de cotas, evitando o risco de fraudes, a UFSB criou o Comitê de Acompanhamento da Política de Cotas (CAPC), órgão colegiado com prerrogativas estabelecidas na Resolução 26/2019, que vem instaurando processos de Averiguação de denúncias, que tem garantido apuração cuidadosa e espaço de defesa as/aos denunciadas/os.
O caso em tela foi apurado por um longo período, tendo sido escrutinado posteriormente por uma Comissão Recursal, e pelo pleno do Conselho Universitário a partir de um parecer apresentado por um dos seus conselheiros.
A UFSB reitera o desejo que políticas públicas de ações afirmativas como essa sejam protegidas para que possam cumprir o papel originalmente desejado, e reforça a sua responsabilidade e autonomia na avaliação dos seus atos administrativos internos.
Reforçamos também que o nosso entendimento sobre o público objeto desta política reparatória tem sido corroborado pela ampla maioria da comunidade acadêmica, assim como por lideranças e entidades da sociedade civil organizada, como pode ser verificado na Nota Pública da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) emitida em 17 de dezembro de 2020.
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