Revitimização: o que é e como podemos impedir que vítimas revivam o trauma
O termo revitimização está em textos e reportagens sobre exploração infantil, violência contra mulher e, agora, no projeto de lei que tipifica violência institucional praticada por agentes públicos no atendimento às vítimas de violência. A proposta, aliás, foi aprovada na Câmara e segue para análise do Senado, o que deve acontecer apenas em 2021.
Revitimização ou vitimização secundária é uma expressão que tem se tornado mais recorrente na Justiça brasileira. Está ligada mais à esfera institucional, mas também pode ser associada ao comportamento de alguém que julga ou discrimina uma vítima de um crime nas redes sociais ou em conversas com amigos. Entenda o que significa e por que há uma lei que prevê a criminalização da prática.
Revitimização: o que é e impactos em que sofreu
Imagine se você é uma mulher e precisa registrar um crime sexual de que foi vítima e, na delegacia, o policial pergunta qual roupa você usava na ocasião. Ou, se você é uma pessoa negra, sofreu um episódio de injúria racial e ouve das autoridades policiais mais comentários racistas. O tratamento que envolve descaso, culpabilização da vítima e muitas vezes é baseado em preconceitos é o que faz da revitimização algo tão sério e que precisa ser combatido dentro dos órgãos oficiais -e na própria sociedade.
Julgar, pedir para que a vítima dê o depoimento sobre o acontecido várias vezes, fazer perguntas ofensivas ou vexatórias a ela ou tratá-la sem oferecer apoio adequado são comportamentos que remetem à ideia de tonar a pessoa vítima novamente. É quando ela sofre uma nova violência causada pelo Estado, no papel dos agentes públicos ou por profissionais de saúde que a atendem e questionam as condições em que aconteceu a situação — fazendo com que a vítima revisite o trauma.
Um grupo de promotores de justiça, psicólogos, professores, delegados, entre outros especialistas, desenvolveu o Estatuto da Vítima. É um projeto de lei que prevê que a vítima tenha "direito a não repetir depoimento devidamente registrado em mídia oral, salvo pedido expresso e fundamentado".
Em crimes contra a dignidade e liberdade sexual (e nos de preconceito de raça e de cor), diz o documento, a formulação de perguntas de caráter ofensivo e vexatório é proibida. O estatuto está sendo avaliado por comissões especiais na Câmara dos Deputados.
"Por ele, o depoimento que ela daria na delegacia já valeria para os registros oficiais. Se necessário um acompanhamento psicológico, teria uma estrutura melhor com redes de apoio do governo com a sociedade", explica a promotora de Justiça Criminal de São Paulo, da 15° Vara Criminal da Barra Funda e uma das participantes do Projeto Acolhimento de Vítimas, Análise e Resolução de Conflitos (Avarc), do Ministério Público do Estado de São Paulo, Lúcia Nunes Bromerchenkel.
Vítima como culpada
É preciso levar em conta que, muitas vezes, já foi duro para a vítima quebrar o silêncio e ter confiança para falar sobre o que sofreu. Não à toa, se constata subnotificação de casos de crimes sexuais, por exemplo. Estima-se que apenas 10% a 15% dos estupros que acontecem no Brasil sejam reportados à polícia, de acordo com o Atlas da Violência de 2018.
O silenciamento pelo sentimento de culpa ou medo também tem impactos emocionais, explica a psicóloga clínica e hospitalar Maria Luiza Bullentini Facury, que atua voluntariamente no acolhimento de vítimas no Avarc. "O silêncio é muito prejudicial. Quantas vezes nós, psicólogos, atendemos pessoas que se calaram durante muito tempo para não ter que viver o sofrimento? Na hora que elas falam, sentem um alívio".
Para ela, não só as autoridades policiais e da Justiça precisam estar capacitadas para evitar a revitimização da mulher.
A sociedade civil também deve pautar questões de crimes contra mulher e de masculinidade tóxica, relacionada à agressividade dos homens e à cultura do estupro e do assédio, para que as vítimas saiam do lugar de medo. Rever estereótipos de gênero e preconceitos que culpabilizam a vítima, como pesquisar a vida pregressa dela, rotular por fotos nas redes sociais ou tentar associá-la a padrões ligados ao comportamento, também faz parte dessa mudança social.
O julgamento leva à revitimização. E esse olhar preconceituoso, acusatório dificulta muito a cicatrização da dor da vítima em função do ocorrido, diz a psicóloga.
"Desvitimização": acolhimento e prevenção
Além do cuidado para não revitimizar a vítima, a promotora de Justiça Celeste Leite dos Santos, que atua à frente do Avarc pontua a necessidade de que o Estado e a sociedade civil garantam apoio para um processo de "desvitimização" da pessoa que sofreu a violência. Ou seja, tirá-la do lugar de vítima, para que ela possa se ver como uma sobrevivente — termo usado com preferência por alguns especialistas no combate à violência contra mulher.
A promotora explica que a desvitimização pode ser feita no nível coletivo e individual. No primeiro, entram as políticas preventivas à vitimização. Ou seja, ações que garantam a proteção e o combate às violências e aos crimes contra coletivos vulneráveis, como as mulheres em situação de risco, crianças e adolescentes, pessoas com deficiência.
"Já no individual, é ter a percepção de que aquela pessoa precisa ser encaminhada para uma assistência psicológica e psiquiátrica, com espaços de acolhimento específicos".
Informar a vítima sobre o que acontece após prestar queixa também é uma forma de dar autonomia e apoio para que a experiência de ter sido vítima seja ressignificada. "Não apaga o que aconteceu, porém a pessoa deixa de se qualificar como vítima, e passa a se ver como quem vivenciou uma experiência de violência".
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