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"Expus abuso e incentivo outras a fazerem o mesmo. Falar ajuda a lidar"

Jacy Lima postou um vídeo detalhando como foi abusada na infância - Reprodução / Instagram
Jacy Lima postou um vídeo detalhando como foi abusada na infância Imagem: Reprodução / Instagram

Jacy Lima em depoimento a Ana Bardella

De Universa

19/12/2020 04h00

"Trabalho com internet e estou acostumada a produzir e postar conteúdos regularmente. Mas, no dia em que decidi contar para as mais de 140 mil pessoas que me acompanham no Instagram sobre os abusos sexuais que sofri na infância, travei. Foram mais de 20 tentativas de gravar o mesmo vídeo. Eu chorava, levantava da cadeira, depois procrastinava. Nunca imaginei que seria tão difícil. Precisei respirar fundo e me convencer de que eu era muito mais do que aqueles acontecimentos. E eu não me calaria e nem deixaria que o trauma me dominasse.

Foi difícil dizer, na frente de uma câmera, que aos 5 anos, um homem adulto tocava meu corpo — e que fez isso durante uma parte significativa da minha infância".

Os abusos aconteciam quando eu ia brincar em uma casa que minha tia, costureira, usava para trabalhar. Algumas vezes, o homem com quem ela era casada conseguia ficar sozinho comigo e me colocava em cima de uma mesa, na beirada. Ali ele me tocava e me cheirava. Lembro claramente de escutar que aquilo era uma brincadeira, um segredo. E que eu não deveria contar para ninguém. Os abusos só pararam quando eu tinha 8 anos, depois de mudar de casa.

Contar de novo pode disparar gatilhos, mas alivia

Resolvi gravar o vídeo contando tudo isso porque acredito que o relato possa ajudar quem já passou por uma situação do tipo. Sempre que falo sobre abuso, recebo inúmeras mensagens de mulheres — e até de alguns homens — que vivenciaram uma experiência como essa, mas que não conseguem falar abertamente sobre ela. Eu entendo o porquê. É horrível. Faz você reviver memórias, cheiros, sensações. E faz também você se dar conta das marcas que aquilo te deixou.

Eu, que pareço bem resolvida e que falo abertamente sobre sexo, já transei diversas vezes sem vontade, por não conseguir dizer não. Fugi de um motel para escapar de uma situação desconfortável. Já chorei durante a relação e evitei determinados toques porque eles me remetiam ao que vivi.

E não sou a única: sei de mulheres que não gostam, por exemplo, de receber sexo oral, porque essa era uma prática dos homens que abusavam delas. Recebo relatos assim por mensagens e foram eles que me motivaram a gravar o vídeo.

Depois de postar, senti como se um peso tivesse sido tirado das minhas costas. Conforme o previsto, recebi uma enxurrada de mensagens de apoio e de seguidores que têm suas próprias histórias para contar.

Coincidentemente, fiz meu desabafo no mesmo dia em que foi lançado o documentário de Anitta, no qual ela conta que foi estuprada aos 15 anos — e que demorou para entender que a culpa não foi sua. Ela diz que dali nasceu uma mulher mais forte. Eu me identifico: também desenvolvi uma personalidade casca grossa, que tem, sim, seu lado sensível. Mas que muito poucas pessoas conseguem acessar".

Tudo isso só confirma a tecla na qual eu venho batendo: precisamos falar e buscar ajuda, fazer terapia. O trauma não desaparece, mas ele fica mais leve, mais fácil de lidar. Abordar o assunto abertamente encoraja outras pessoas e ajuda a não perpetuar as culturas do abuso sexual infantil e do estupro.

Quantas vítimas já ouviram: 'Não fala isso não' ou 'Já faz tanto tempo que isso aconteceu, pra que reviver isso agora'? Mas abafar não resolve. Questionar muito menos. Cada um tem seu tempo, seu processo e seus métodos de defesa. Não cabe a nós questioná-los. O que cabe a nós é acolhermos.

E que bom que cada dia mais estamos nos sentindo seguras para falar."

Estupro: entenda até quando é possível fazer a denúncia

Estupro é um crime sexual em que uma pessoa força outra, por meio de violência ou ameaça, a ter qualquer tipo de contato sexual. Pode ser tanto o toque em partes íntimas e sexo oral quanto penetração.

O Código Penal traz quatro tipos de estupro. Quando o ato é praticado com um menor de 14 anos, o crime é classificado como estupro de vulnerável. A pena vai de 8 a 15 anos.

Crimes têm prazos para serem denunciados. É a chamada prescrição. Se o crime prescreveu, o Estado não mais pode processar, julgar ou condenar o acusado em razão do tempo decorrido. O tempo de prescrição depende da pena que o agressor poderia receber. Se for estupro de vulnerável, a prescrição é de 20 anos, que passam a contar a partir do momento que a vítima completa 18 anos.

Essa contagem mudou em 2012 — antes, o tempo de prazo começava a correr a partir do dia do crime. Mas a nova contagem só vale a partir do ano em que a regra foi estipulada. Ou seja, somente crimes cometidos depois de 2012 têm a prescrição de 20 anos após a vítima fazer 18.

Como denunciar um estupro depois de anos?

Se o crime ainda não prescreveu, quem foi vítima de violência sexual pode procurar qualquer delegacia de polícia para fazer um boletim de ocorrência e registrar ali o ocorrido. Não é preciso juntar provas já que seu relato deve ser considerado suficiente para dar início à investigação.

A partir de seu depoimento, a polícia determina como coletará as provas, e quais serão reunidas. A vítima também pode procurar o Ministério Público Estadual para relatar o crime.