"Na seleção, era chamada de burra e incapaz e tinha que me pesar todo dia"
Pertencer à seleção brasileira de ginástica rítmica era o maior dos meus sonhos. Mas, quando finalmente cheguei lá, se tornou o pior de todos os pesadelos.
Sou de Poços de Caldas, interior de Minas Gerais, e conheci a ginástica aos 8 anos, na escola. Naquela época, tudo era uma brincadeira. Ingressei em um grupo montado pela professora e, dois anos depois, comecei a competir.
Desde sempre ouvia falar da importância da magreza para ser uma boa ginasta. No nosso grupo, havia uma menina alta e magra — e já nessa época a técnica reforçava que nós 'tínhamos que ser como ela'. Como estava me apaixonando pelo esporte e desejava ter um bom desempenho, essa passou a ser uma preocupação na minha vida.
Aos 12 anos, passei a levar a ginástica muito a sério. Eu estava em fase de crescimento e sabia que não poderia controlar a minha altura. Mas o peso, sim.
Cheguei a escutar de uma treinadora que o certo seria estar sempre 15 kg abaixo da minha estatura. Ou seja, se medisse 1,50 m, deveria pesar, no máximo, 35 kg. Na tentativa de amenizar meu biotipo, de pernas grossas, passei a comer cada vez menos
Minhas restrições alimentares eram infinitas: não tomava refrigerante, não colocava nada frito na boca. Se minha mãe fazia um pastel, pedia que assasse no forno, caso contrário, eu não chegava perto. Cheguei a ficar afastada dos colegas de escola porque os treinos me tomavam muito tempo, mas, quando podia sair, achava impossível socializar. Ninguém entendia os motivos pelos quais eu não podia comer.
Seguia à risca as regras de uma nutricionista do clube ao qual pertencia, que nos orientou a não jantar depois das 20h. Chegava faminta do treino em casa, às 21h, e tomava leite com cereal.
Aos 14 anos, tentei provocar meu próprio vômito duas vezes, mas não consegui. Meu corpo sentiu o efeito de tantas restrições e lesionei o quadril. Sentia também dores nos joelhos e nas articulações.
'Um nutricionista responsável mudou a minha história'
Nessa época, conheci o nutricionista que me salvou: ele diagnosticou o quanto eu estava fraca, beirando a desnutrição. Didaticamente, me explicou o quanto era necessário que eu ganhasse massa muscular para que conseguisse realizar os movimentos de maneira mais segura, sem me lesionar.
Aos poucos, foi aumentando a quantidade de comida que eu ingeria. Montou um planejamento alimentar para que eu seguisse e foi tirando de mim a culpa. Ele me passou como tarefa experimentar, todo fim de semana, algo que eu nunca tivesse comido.
Com isso, voltei a treinar. A dor deixou de ser um problema e busquei me profissionalizar. Mas a realidade do meu clube, no interior de Minas, não era perfeita.
Quando completei 15 anos, a chegada de uma treinadora muito autoritária, que nos obrigava a nos pesar todos os dias e que controlava o que levávamos de lanche para comer, tornou esse objetivo mais difícil
Comecei a enfrentá-la e acabei saindo do clube. Mas não quis desistir de vez da ginástica, então treinei por algum tempo na rua, por conta própria, até que fui aceita por uma técnica de Belo Horizonte, que tinha o objetivo de nos preparar para a seleção.
Fiquei pouco tempo ali: logo vieram as seletivas e eu passei. Em 2009, aos 16 anos, realizei o sonho de toda ginasta, de chegar ao lugar que me levaria para as grandes competições. O que nunca me passou pela cabeça é que a experiência poderia ser tão horrível quanto foi.
'Ouvia que era burra, incompetente e incapaz'
Logo que chegamos ao centro de treinamento, começaram os xingamentos. 'Burra', 'retardada', 'incompetente', 'incapaz': qualquer coisa que passasse pela cabeça da treinadora, ela dizia. A palavra que mais me marcou, que era usada com frequência para se referir a mim, era 'jumenta'. Ela chegou a dizer que nós éramos 'a seleção brasileira que come capim'. Tudo era muito preconceituoso.
Precisávamos nos pesar todos os dias. Nosso peso era anotado em um caderno. Às vezes, ela só olhava. Em outras, fazia uma reunião e dizia na frente de todas: segunda-feira preciso da fulana dois quilos mais magra
Eu, que já sabia a quantidade e variedade certa dos alimentos que precisava ingerir para ter um rendimento satisfatório, também tinha o prato fiscalizado. Na hora do almoço, nós escolhíamos a comida, colocávamos na balança e recebíamos fichinhas com o peso. Repassávamos a uma pessoa da equipe para que ela pagasse.
Mas os valores eram usados como ferramenta de fiscalização. Quem estivesse com o prato muito pesado levava bronca. Passamos a pegar só os recheios das tortas, por exemplo. Fazíamos de tudo para deixar nossos pratos mais leves
A gota d'água para mim foi uma viagem. Primeiro competimos a Copa do Mundo da modalidade em Misk, em Belarus, e não tivemos um bom desempenho. Depois, passamos por um treinamento na Bulgária. Lá, peguei uma intoxicação alimentar, passei muito mal e não tive nenhum amparo.
No meio de uma das coreografias, precisei sair correndo para o banheiro. Tive que ouvir que estava daquela forma porque 'comi demais' e porque tinha ingerido um iogurte no café da manhã
A partir dali, fui proibida de comer pelos dias seguintes. Por sorte, passei em um supermercado e comprei algumas bananas e bolachas de água e sal. Vivi à base daquilo por um curto período, mas perdi muito peso.
Com isso, minha lesão do quadril reapareceu e atrapalhou demais o meu desempenho. Um dia, pediram que treinássemos também no período da noite. Eu acabei dormindo, porque estava doente, mas foram no meu quarto pedir explicações e me fizeram descer para treinar.
Eu fiquei fraca e indignada. Voltei de lá com a expectativa de que a pressão diminuiria após a competição, mas estava enganada. Sem conseguir fazer alguns movimentos, fui muito xingada. Uma fisioterapeuta me orientou a ficar sem treinar para poder me recuperar.
Nisso, o mês de dezembro estava se aproximando e nele participaríamos de outra seletiva. Percebi que, naquelas condições, eu não queria ficar. E bancar essa decisão foi uma das coisas mais difíceis que precisei fazer na vida.
'Fiquei sem chão: só me reencontrei novamente na nutrição'
Até hoje é duro pensar que saí. Fiquei muito perdida fora daquele ambiente. Não sabia o que queria: só sabia que uma parte significativa da minha autoconfiança tinha sido perdida.
Fiquei três anos fazendo cursinho. Passei em dois vestibulares de medicina, mas não quis ir. Meu sonho era educação física, mas nem cogitava a possibilidade, porque não queria correr o risco de fazer com alguém o que fizeram comigo. Foi então que a nutrição surgiu e me ajudou a lidar melhor com a minha própria história.
Eu sempre soube que ficar mais magra não era o que me levaria a ter um rendimento melhor. Hoje, graças aos estudos, sei que o atleta pode e deve comer de tudo para ter um bom desempenho e melhorar sua performance.
Passei quase dez anos sem olhar de novo para a ginástica, mas hoje sei o quão perto cheguei de desenvolver um distúrbio alimentar
Refletindo a partir da minha experiência e do que observei entre as minhas colegas, tenho certeza de que parte do treinamento de qualquer ginasta deveria ser voltado à prevenção desse tipo de problema. É uma cultura que precisa ser mudada.
Por isso, sempre digo: não adianta tirar a balança do ginásio se os motivos que fazem a atleta querer controlar rigorosamente seu peso ainda estiverem lá."
Entenda o caso
Nathane faz parte de um grupo de ex-atletas da Seleção Brasileira de Ginástica Rítmica que denunciaram uma rotina de abuso moral, xingamentos e um controle radical do peso. A denúncia foi ao ar no último domingo, na TV Globo. Ao todo, a reportagem ouviu 27 ginastas, e todas confirmaram situações do tipo.
Em nota à Universa, a Confederação Brasileira de Ginástica afirmou que o comitê de ética do órgão está investigando os casos. A nota afirma também que a CBG estimula denúncias e combate a assédios e abusos e que "repudia veementemente qualquer forma de constrangimento ou violência".