'Dignidade menstrual': Brasil ainda está longe de ser a Escócia?
Há cerca de um mês, a Escócia se tornou o primeiro país a oferecer produtos menstruais gratuitos a todas as mulheres necessitadas. Até então, absorventes internos e externos eram gratuitos apenas para alunas do ensino médio e universitárias, mas agora o projeto prevê um plano de distribuição nacional. Ao todo, a medida deverá custar cerca de 11 milhões de euros (aproximadamente 63 milhões de reais) ao governo escocês.
Aqui no Brasil, uma pesquisa de 2018 da marca de absorventes Sempre Livre mostrou que 22% das meninas de 12 a 14 anos não têm acesso a produtos menstruais. Entre adolescentes de 15 a 17 anos, o número sobe para 26%. Em junho de 2019 a Câmara de Vereadores do Rio de Janeiro aprovou a lei número 6603, que previa o fornecimento de absorventes nas escolas públicas da rede municipal. O projeto, porém, ainda não foi sancionado pelo prefeito Marcelo Crivella.
Já no estado do Rio de Janeiro, absorventes passaram a fazer parte das cestas básicas desde julho de 2020. Em São Paulo deputadas de diferentes bandeiras políticas apresentaram uma PL no final de 2019 para tentar distribuir absorventes para mulheres carentes, presas e em situação de rua.
O projeto "Menstruação sem tabu", que foi assinado por Janaina Paschoal (PSL), Leci Brandão (PCdoB), Beth Sahão (PT), Edna Macedo (Republicanos) e Delegada Graciela (PL), ainda está em análise da Comissão de Constituição, Justiça e Redação (CCJR) e, no Rio Grande do Sul, a deputada Luciana Genro (PSOL) também protocolou o mesmo projeto para incluir absorventes na cesta básica gaúcha.
Segundo a Unicef (Fundo das Nações Unidas para Infância), mulheres que não tem acesso à educação menstrual têm mais chances de viver uma gravidez precoce, sofrer violência doméstica e ter complicações durante a gestação. Além disso, a falta de acesso a absorventes também provoca evasão escolar e profissional. Em meio a tantos projetos de lei, o Brasil ainda patina no combate à pobreza menstrual. Enquanto isso, pessoas, marcas e organizações sociais buscam garantir dignidade às pessoas que menstruam.
A primeira Casa da Menstruação do Brasil
É o caso da engenheira química Raíssa Assmann, criadora e fundadora da Herself, uma empresa de calcinhas e biquínis absorventes. Quando fundou a marca em 2017, ao lado da sócia Victória Castro, Raíssa logo percebeu que o preconceito e o tabu com a menstruação atrapalhavam o acesso de mulheres a produtos de higiene básica. Foi aí que ela decidiu criar um braço educacional da empresa, a Escola da Menstruação, que oferece oficinas de confecções de absorventes a pessoas em situação de rua e à população carcerária.
"A menstruação é um assunto público e social. Quando falamos de pobreza menstrual, que é a falta de acesso a mínimas condições de educação, tem que sair do âmbito individual e particular e virar política pública", diz Raíssa.
Há pouco tempo, Raíssa e a sócia também criaram o projeto "Cadê o absorvente?", uma iniciativa nacional que reúne coletivos feministas de oito estados brasileiros a fim de promover a dignidade menstrual. Esta rede de apoio leva e organiza as oficinas de confecção de absorvente ao restante do país, que agora, por conta da pandemia, estão sendo exibidas online. No Rio Grande do Sul, as aulas serão ministradas na primeira Casa da Menstruação do Brasil, um espaço físico recém-aberto em Porto Alegre que, além de servir de estúdio para a Herself, também será a sede da Escola da Menstruação.
"Absorvente tem que ser gratuito igual camisinha"
O "Tô de Chico" é um projeto que também surgiu da junção de duas mulheres para tentar garantir a dignidade menstrual à população carente. Em 2018, as amigas Carolina Chiarello e Talita da Silva resolveram se unir para arrecadar e distribuir absorventes pelo centro e pela zona sul do Rio de Janeiro, e em alguns trechos de Niterói.
Logo as fundadoras da ONG notaram que muitas mulheres também necessitavam de calcinha, então adicionaram a peça e sutiã ao pacote de doação. Todo mês, mesmo durante a pandemia, elas entregam absorventes à população carente. O projeto já auxiliou mais de 700 mulheres em situação de rua e hoje outras duas pessoas fazem parte do comitê do "Tô de Chico".
Na opinião de Talita, "precisamos refletir que menstruação é parte da vida da mulher. Não tem como simplesmente ignorar. Todo mês ela precisa gastar pelo menos 8 reais com isso. E a realidade de muitas delas não é igual a nossa, como é o caso das mulheres em situação de rua, por exemplo. Absorvente tem que ser gratuito igual camisinha".
Falta investimento e pesquisa
Sobre as iniciativas e investimentos públicos do Brasil nesse sentido, a gaúcha Raíssa alerta para um ponto importante: faltam pesquisas e um mapeamento nacional para entender a complexidade do problema país a fora. "É preocupante que o IBGE, por exemplo, não tenha números sobre menstruação. Tem um monte de cidade sem saneamento básico, qual a relação disso com a pobreza e a menstruação? Esses números poderiam mostrar, por exemplo, o quanto uma menina que não tem acesso a um absorvente deixa de colaborar economicamente com a região".
No Rio de Janeiro, único estado em que uma lei para inclusão de absorvente nas cestas básicas já foi aprovada, os avanços seguem lentos e ainda não tem previsão de quando a medida será implementada. Mas Talita, da ONG "Tô de Chico" acredita que, com a eleição de mais mulheres para cargos públicos, a pauta da dignidade menstrual passará a receber a atenção que merece. "É um assunto de mulher que muitos homens não têm conhecimento nenhum. Agora, com esse 'boom' de mulheres sendo eleitas, esse jogo pode virar".
Vale lembrar que, em 2014, a ONU reconheceu que o direito de mulheres à higiene menstrual é uma questão de saúde pública e de direitos humanos. O que aconteceu na Escócia, portanto, deveria servir de exemplo para que a pauta da dignidade menstrual avançasse no Brasil e no mundo.
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