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Argentinas festejam aborto legal em "carnaval verde" na Praça do Congresso

Mulheres comemoram a aprovação da lei que possibilita o aborto na Argentina, até a 14ª semana da gestação. - Getty Images
Mulheres comemoram a aprovação da lei que possibilita o aborto na Argentina, até a 14ª semana da gestação. Imagem: Getty Images

Luciana Rosa

Colaboração para Universa, de Buenos Aires

30/12/2020 09h04

Nem a pandemia foi capaz de desencorajar a multidão feminina que compareceu à Praça do Congresso, em Buenos Aires, na madrugada histórica desta quarta-feira, 30. As mulheres seguiram de perto a votação do projeto de legalização do aborto, aprovado pelo Senado com 38 votos a favor, 29 contra e 1 abstenção, por volta das 4h. A comemoração foi digna de final de Copa do Mundo.

Argentinas de todas as idades compunham o "carnaval verde", caracterizado pela adesão dos lenços nesta cor, que passaram a ser usados em marchas feministas em todo o país. Entre as componentes da maré esverdeada estava a estudante Rócio, de 18 anos, que foi à praça acompanhada pela mãe e pela irmã de 12 anos.

O que despertou em nós a urgência de ir às ruas pelo direito ao aborto foi a quantidade de outras mulheres que morreram por não poder fazê-lo em condições dignas

Na comemoração pós-aprovação, as amigas Magdalena e Lucila estavam grafitando o símbolo da campanha pelo aborto e falaram à Universa entre lágrimas. A grafiteira Lucila contou que sua mãe a teve aos 20 anos e que ela sabe o quão duro foi ter que criá-la sozinha. Resumiu sua motivação de estar ali para garantir que outras mulheres tenham o direito de decidir o que a mãe não pode.

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As amigas Magdalena e Lucila
Imagem: Luciana Rosa

"Minha mãe tinha 20 anos quando engravidou e certamente não tinha dinheiro para abortar clandestinamente. Ela não teve outra alternativa. Para mim, se uma mulher não quer ter um filho, tem que ter o direito de decidir", disse a grafiteira.

A estudante Micaela veio preparada para o calor sufocante de quase 40 graus que fazia na noite da votação. "A interrupção voluntária da gravidez era uma luta necessária. Nos bairros mais pobres faz muito falta uma lei que estabeleça o acesso à educação sexual. Lá as mulheres têm filhos porque não há outra opção para elas", diz.

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A estudante Micaela
Imagem: Luciana Rosa

As amigas Camila e Lucía, de 30 anos, compartilhavam algumas empanadas ali mesmo na praça, em pé, enquanto aguardavam a votação. "Infelizmente nos tornamos conscientes da importância do aborto apenas há alguns anos. Mas a tempo de apoiar essa luta", disse Camila.

Mas não só de jovens estava ocupada a praça nesta noite de espera. Teresa, de 67 anos, veio com a nora completar um ciclo de militância política, que incluiu a luta feminista, e aguardar a decisão sobre a lei. Apesar de estar otimista para o resultado favorável, ela disse que não acredita que a Argentina vá mudar muito daqui para frente. "A divisão que se configurou entre lenços verdes [favoráveis ao aborto] e azuis [contra] aqui hoje reflete uma divisão que também se vê na sociedade", avalia Teresa.

Sou militante desde muito jovem. Me emociono ao ver essa juventude que se empodera e toma realmente a decisão sobre seu corpo, que têm firmeza sobre suas opiniões, é nelas que reside a transformação.

Teresa, de 67 anos, acompanha a votação com a nora - Luciana Rosa - Luciana Rosa
Teresa, de 67 anos, acompanha a votação com a nora
Imagem: Luciana Rosa

Militância feminista e a origem dos lenços verdes

Durante o Encontro Nacional de Mulheres, que agora se chama Plurinacional, ocorrido em Rosário, em 2003, as Católicas Pelo Direito de Decidir recortaram alguns triângulos verdes de tecido para que fosse possível identificar nas ruas aquelas pessoas que estavam a favor do aborto. A transformação em lenços não foi aleatória, foram escolhidos inspirados nos lenços brancos utilizados pelas madres e avós da Praça de Maio.

Em 2005, foi fundada a Campanha Nacional pelo Direito ao Aborto com presença em toda a Argentina e que culminou na elaboração dos primeiros projetos pró-aborto, alcançando um debate massivo somente em 2018. Lembrando que este foi o ano em que, pela primeira vez, o projeto foi efetivamente levado a votação.

As amigas Camila e Lucila: pausa para o lanche durante a votação, que se estendeu na madrugada. - Luciana Rosa - Luciana Rosa
As amigas Camila e Lucila: pausa para o lanche durante a votação, que se estendeu na madrugada.
Imagem: Luciana Rosa

"Nós esperávamos essa votação com muita emoção. Nós, que estamos na campanha há 15 anos, argumentando, organizando-nos territorialmente no país inteiro é, de alguma maneira, o triunfo de tudo que viemos dizendo há tanto tempo", festejou Laura Salomé da integrante da Campanha pelo Aborto Legal.

Nesse sentido, outro movimento feminista foi chave para convocar as mulheres de diferentes posicionamentos políticos, idades e classes sociais a ir às ruas para lutar por seus direitos. O Ni Una Menos, surgido em 2015, marcou um antes e um depois na dinâmica feminista argentina. Primeiramente como a convocatória de uma marcha para visibilizar e pedir justiça para casos de feminicídios e violência contra as mulheres.

Não demoraria para que outras reivindicações fossem incluídas, entre elas o Direito a Decidir, e que os dias 3 de junho se transformassem em um dia especial no calendário político local para essa luta. Três anos depois, o solo para pedir que o governo tratasse oficialmente a legalização do aborto estaria germinado.

"Foi muito impactante o que fez o 'Ni Una Menos', o primeiro grande encontro feminista que nós vivemos como adolescentes", conta Lúcia que compareceu à praça com suas amigas. "De alguma maneira isso nos marcou e depois foi avançando várias reivindicações que nós trabalhamos muito no ensino médio com o que conforma hoje a educação sexual integral", conta.

Durante o governo de Maurício Macri em 2018, a chamada Lei de Interrupção da Gravidez foi aprovada na Câmara de Deputados, mas, sem o impulso necessário por parte do executivo, acabou sendo recusada no Senado.

Uma promessa de campanha de Alberto Fernández, que em seu discurso de abertura do ano legislativo, em 1° de março, garantiu que apresentaria um projeto, redigido pelo poder executivo para votação no prazo de duas semanas. Mas, a pandemia foi mais rápida e modificou completamente os planos de seu primeiro ano de governo.

Somente em novembro o texto da lei foi finalmente apresentado para ser tratado na câmara de deputados, e agora, com sua aprovação o presidente diz que havia se comprometido com isso nos dias de campanha eleitoral. "Hoje somos uma sociedade melhor e mais abrangente em direitos das mulheres que garante a saúde pública", tuitou o presidente.

O mandatário remarca um dos detalhes mais importantes do projeto, o de que o aborto será um procedimento garantido de realização pelo sistema público de saúde.

O projeto também inclui plano para aquelas que desejam ser mães

Na Argentina o procedimento terá que ser na rede pública de saúde até 10 dias depois logo de ser solicitado pela mulher. O projeto de lei contempla a possibilidade de interromper uma gravidez até a 14ª semana de gravidez.

Menores de 16 anos terão que estar acompanhadas de algum adulto responsável para solicitar o procedimento. Menores de 13 anos ou aquelas que tenham sido vítimas de um estupro ou apresentem risco de morte poderiam exceder as 14 semanas.

Um detalhe da lei é que habilita a objeção de consciência de profissionais da saúde que não estejam de acordo com essa prática médica. Nesse caso, a paciente deverá ser direcionada a outro profissional que sim possa realizar o procedimento.

Além da interrupção voluntária da gravidez, foi aprovado também o Plano de 1000 dias, pensado para acompanhar as mulheres que decidam levar adiante sua gestação, mas não têm condições financeiras. O projeto está baseado em três pilares: garantir a saúde integral das gestantes e seus filhos, direito à identidade, segurança social e assistência econômica.

"As mulheres na Argentina recebem um benefício por 6 meses por conta da gravidez, essa lei o prolonga a 9 meses, além de acrescentar um subsídio por nascimento, ou seja, que cada criança parida ou adotada dá direito à mãe a solicitar um novo montante", explica o deputado Pablo Yedlin, presidente da Comissão de Ação Social e Saúde Pública.

Outro subsídio, oferecido anualmente, estaria atrelado a que essas mães ou responsáveis tenham em dia os controles de saúde da criança, assim como as vacinas.

O que pensa a opinião pública

O aborto só era legalizado na Argentina em caso de ser fruto de um estupro ou risco de morte do feto ou da gestante. Por isso, os números sobre quantos procedimentos clandestinos são realizados no país não são oficiais e, portanto, pouco precisos. Estima-se que se realizavam entre 371 e 522 mil abortos induzidos anualmente, segundo as demográficas Edith Pantelides e Silvia Mario.

De acordo com os dados do Centro de Estudios de Estado y Sociedad (CEDES) e da Red de Acceso al Aborto Seguro de Argentina (REDAAS), quase 60% das pessoas que abortaram em 2018 tinham entre 20 e 29 anos, cerca de 60% já era mãe.

Uma sondagem realizada em novembro pela consultora Poliarquia, teve como resultado 41% dos ouvidos favoráveis à legalização, 48% disseram que se opõem e 11% preferiram não opinar. Já o Instituto CELAG obteve uma mostra de 55% de pessoas favoráveis ao aborto legal, 39% contrários e 6% sem posicionamento firme, em um pesquisa também realizada em novembro.