Assédio judicial: o recurso usado por agressor para silenciar a mulher
No Dia dos Namorados de 2020, três meses depois de publicar um texto nas suas redes sociais no qual expôs o ex-namorado que a agrediu fisicamente e a estuprou, a ilustradora Rebeca*, 31, recebeu um boletim de ocorrência. "Ele tinha me denunciado por calúnia e difamação". Como era apenas o comunicado do B.O., sem intimação, Rebeca imaginou que a história pudesse morrer ali.
Até que em 1º de janeiro de 2021 chegou uma notificação extrajudicial da advogada do agressor exigindo que ela retirasse os posts do ar em 72 horas e que não falasse mais o nome do rapaz. "Sendo que eu nunca falei o nome dele, em lugar nenhum. Para evitar dor de cabeça e orientada pela minha advogada, tirei. Mas penso em colocar os posts de volta no ar com o nome e sobrenome dele. Quero refazer o relato e chamar os crimes dele pelo nome, como o de estupro", diz. "É impressionante como a gente é questionada por denunciar violência. Pensei em denunciar, mas um advogado que procurei na época disse que 'não vai dar em nada' e desisti."
O caso de Rebeca é um entre tantos de mulheres que expuseram nas redes sociais as violências que sofreram, mas que de alguma maneira foram coibidas legalmente de continuarem com sua denúncia. No meio jurídico, quando a lei é usada para tentar silenciar vítimas, há um nome específico: trata-se de assédio judicial. Vale também, e acontece com muita frequência, em casos de processos já estabelecidos contra agressores, que processam as vítimas para barrar o andamento do caso.
O que é assédio judicial e como é usado para calar mulheres?
Assédio judicial é um termo que identifica a utilização do direito ao acesso à Justiça de forma abusiva, para dificultar o andamento de processo ou como estratégia de intimidação e perseguição contra pessoas que denunciam terceiros.
Nessa situação, o quadro se inverte: a vítima se torna denunciada. "Infelizmente, ocorre mais com mulheres. É muito comum em processos de violência no qual o agressor não pode mais agredi-la diretamente. Aí, começa a tentar atingi-la por meio do poder do Estado", explica a advogada Julia Nunes Santos, especialista em direitos das mulheres e fundadora da Associação Ame, que acolhe vítimas de violência de gênero.
"Os agressores inventam contravenções praticadas pela vítima para esconder os seus verdadeiros crimes. Acontece muito também em varas de família, em que se movimentam ações de alienação parental, por exemplo, ou pedido de guarda unilateral dos filhos em comum para tentar ferir a vítima", diz.
A advogada Gabriela Souza, do escritório Advocacia para Mulheres, explica que clientes suas já desistiram de processos contra ex-companheiros por causa de assédio judicial. Nessas situações, além de terem que lidar com todo o calvário da denúncia que fizeram, ainda precisam responder a outros processos de crimes que não aconteceram, sendo, inclusive, desqualificadas pela própria Justiça em seus relatos.
"Mito da mulher perversa ainda é aceito no judiciário", diz advogada
"Até hoje há o mito da mulher perversa aceito no judiciário. Então de forma geral sempre se entende que ela tem um motivo ruim, perverso, para buscar seus direitos. Ela quer dinheiro, quer prejudicar a vida do homem", diz Gabriela. "Essa é a resposta que ela recebe ao desafiar a lógica machista do meio."
Em relação às postagens nas redes sociais, a advogada Isabela Guimarães Del Monde, da Rede Feminista de Justiça e do Me Too Brasil, afirma que a Justiça vê como "desejo de chamar atenção ou vingança". "É um sistema que revitimiza mulheres que buscam a reparação, reduzindo seu desespero em expor a própria história", afirma.
"É preciso que se compreenda o porquê de as mulheres romperem o silêncio nas redes e como é possível criar um ambiente mais justo para que não precisem se expor em atos de desespero. Ou alguém acha que é agradável publicar um vídeo de um tapa recebido ou contar em um tuíte que foi estuprada? Não é. E se isso é utilizado como um recurso final de busca pela de justiça a falha está na estrutura oficial de acolhimento e tratamento e não nas mulheres", aponta. Entre os casos recentes, ela cita o da atriz Dani Calabresa e da influenciadora Pétala Barreiros.
Para resolver o problema, Isabela aposta em mais mulheres no sistema de Justiça e formação educacional para todos os integrantes, no sentido de desconstruir o machismo presente no sistema. "Eu tenho um respeito profundo pelo Judiciário brasileiro. Mas, seus membros ainda não representam a diversidade da sociedade brasileira. Para se ter uma ideia, temos mais desembargadores que se chamam Luis do que desembargadoras mulheres. Essa composição homogênea de homens brancos vai resultar em decisões e sentenças que refletem os marcadores de identidade de quem as emite, ainda que inconscientemente."
Prática não é crime, mas é ilegal
Como explica a presidente da Comissão Nacional da Mulher Advogada da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil), Daniela Borges, o assédio judicial é reconhecido como um "ilícito" pelo STJ (Superior Tribunal de Justiça) desde 2020. Isso significa que não chega a ser considerado crime, mas pode ser passível de punição, como pagamento de indenização e multa.
"Acredito que a decisão do STJ demonstrou que já temos normas para coibir a prática", afirma Daniela, que também acredita ser necessária uma mudança no judiciário. "É preciso que se coloque isso em prática."
Para Gabriela Souza, a advocacia feminista, que revisita leis já cristalizadas na tentativa de mudá-las para proteger vítimas, é um importante instrumento de transformação social. "O judiciário precisa ser encharcado de ações que falem sobre direitos das mulheres para que comece a enxergar o que acontece. É um absurdo que tenha demorado tanto para falarmos disso, mas acho que a cortina de fumaça se dissipou."
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