"Barrada em bar por ser trans, fiz manual e hoje oriento grandes empresas"
"Gosto de coisas do universo feminino desde criança. Via roupas, observava formas de agir e de ser e, de alguma forma, queria fazer parte desse mundo, mas não achava que isso era possível. Era como um sonho distante. Cresci e tentei deixar esse desejo de lado, mas não consegui.
Só tive a força e a coragem de passar pelo processo de transição quando estava na faculdade, aos 21 anos. Aí pude dizer "meu nome é Gabriela" e externalizar tudo que sempre senti. Foi um processo difícil, que precisei me entender e me aceitar, mas tive muito apoio da minha esposa, que está comigo desde antes da transição.
De lá para cá, passei por muitas situações envolvendo preconceito e discriminação. A vida de uma pessoa trans não é nada fácil: a gente sofre violência e dá de cara com uma série de barreiras. A principal, para mim, estava relacionada ao mercado de trabalho. Ainda na faculdade, via um ambiente empresarial num contexto muito conservador e poucas pessoas como eu nas empresas.
Quando não nos vemos representadas nesses espaços, achamos que não é possível estar lá. Então, comecei a me perguntar se eu poderia seguir carreira pública. Lembro de uma aula de Direito Penal, em que o professor estava explicando como funciona o concurso da magistratura. Ele falou que a prova era muito concorrida e, que ao final do processo, havia uma banca examinadora para dizer se a pessoa tinha ou não o perfil.
Perguntei se ele achava que uma pessoa trans seria aprovada por essa banca. E ele disse que não, que a banca encontraria outra justificativa, mas que não haveria um juiz ou uma juíza trans. Pensei em quão injusto isso é: ver nosso futuro tomado pelo preconceito e pela intolerância.
Em 2019, estive presente em um evento realizado pelo Tribunal Regional do Trabalho da 2° Região, em São Paulo. Essa foi a primeira vez que os juízes, desembargadores e demais servidores dessa instituição receberam uma palestrante trans.
Barrada na festa: a gota d'água
A gota d'água para mim foi em 2017, na comemoração de aniversário da minha esposa. Nós duas fomos a uma festa e fui impedida de entrar por ser uma mulher trans. Os seguranças pediram para que eu "provasse" que era uma mulher, senão, teria que ir para a fila masculina.
Para evitar conflitos, acabei indo para a entrada de homens. Infelizmente também fui impedida de entrar por um segurança que disse "não saber o que fazer comigo". A situação se tornou ainda mais constrangedora por conta das outras pessoas que estavam aguardando na fila. Ao presenciarem o acontecimento, começaram a rir e fazer piadas comigo e com a minha esposa.
Naquele momento não pensei em processar o local, mas sim em um jeito de evitar que outras pessoas passassem por aquele constrangimento. Decidi criar um livro de bolso chamado Manual Empresa de Respeito, de 15 páginas, em que sintetizei os principais conceitos relacionados ao combate à LGBTfobia, assédio a mulheres, racismo e outros tipos de intolerância.
'Empresas não queriam meu manual nem de graça'
Assim, em 2017, comecei a ir a empresas dos bairros da Vila Madalena, Pinheiros e Vila Olímpia, em São Paulo, para distribuir o material gratuitamente. Mas a maioria não quis receber nem de graça. Ficava até tarde indo de porta em porta e só recebia negativas.
Ouvia muito "não levantamos nenhuma bandeira" ou 'não estamos disponíveis para ajudar'. Mas isso não tem a ver só com ajuda, com promover uma cultura de respeito, mas também com a performance empresarial. Está provado que a diversidade traz resultados para as empresas e mais competitividade.
Não conseguia entender tantos 'nãos'. Foi um momento muito difícil que cheguei, até, a ter medo de andar na rua, pois estávamos passando por uma fase muito conservadora. Algumas empresas até marcavam para conversar comigo, mas chegava o dia e as portas estavam fechadas. Recebia respostas como 'puxa, esqueci'.
Era muito descaso. Ficava triste, mas não entendia como elas não conseguiam ver o valor da diversidade, porque não tratavam o tema com empatia. Não se posicionar também é um posicionamento. Há empresas que estão presas ao passado, mas tenho certeza que elas não vão sobreviver.
'O primeiro sim fez nascer minha consultoria'
Até que depois de uns cinco meses, uma hamburgueria me deu voz e comecei a receber pedidos para estruturar programas de conscientização, contratação e comunicação em empresas. Nesse momento, procurei me especializar mais nas discussões que conduzia, fazendo cursos, pesquisando e comprando livros. Hoje, além de mim, tenho uma equipe formada por especialistas que me auxiliam nos projetos. Esse foi o início da Transcendemos Consultoria.
Inicialmente as empresas me contratavam para palestras e ações de conscientização e treinamento, mas com o tempo comecei a estruturar programas completos de inclusão. Hoje sou uma voz influente e fui, até, nomeada como 'Top Voicer' no LinkedIn, e já atendi companhias da América Latina e do Brasil, como Gerdau, Google, Kraft-Heinz e Citi.
'É simbólico uma pessoa trans chegar aonde cheguei'
É bem simbólico uma pessoa trans chegar onde cheguei e me sinto muito orgulhosa. Mas essa não é uma conquista individual: ao meu lado estão várias outras pessoas trans e negras. E por isso sigo lutando pela inclusão e pelo respeito. Com todas as adversidades pelas quais passei, aprendi a ser forte e a não desistir, mesmo quando, às vezes, a força parece acabar.
Por mais que seja difícil, há outras pessoas que têm menos voz do que eu e que, de alguma forma, posso representá-las, lutar por seus direitos. Não posso parar, pois minha responsabilidade vai além do individual."
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