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Grupo ajuda brasileiras a abortarem e planeja fretar ônibus para Argentina

Encontro do Milhas Pelas Vidas da Mulheres: iniciativa ajuda a acessar o aborto legal, dentro e fora do Brasil - Arquivo pessoal
Encontro do Milhas Pelas Vidas da Mulheres: iniciativa ajuda a acessar o aborto legal, dentro e fora do Brasil Imagem: Arquivo pessoal

Camila Brandalise

De Universa

18/01/2021 04h00

Desde que a roteirista e diretora audiovisual Juliana Reis, 57, fundou o grupo Milhas Pela Vida das Mulheres, em setembro de 2019, cerca de 1.700 mulheres morreram por complicações decorrentes de um aborto clandestino no Brasil, segundo estimativa baseada em dados do Ministério da Saúde. No site do grupo, uma espécie de placar vai sendo atualizado com números relacionados ao aborto no Brasil, entre eles esse, sobre mortalidade.

Criado para ajudar mulheres a viajar para o exterior e interromper, legalmente, uma gravidez indesejada, o grupo já prestou auxílio, coincidentemente, a outras 1.700 mulheres que queriam interromper a gestação.

Para 214 delas, o Milhas viabilizou uma viagem a outro país ou mesmo no Brasil, para realizar o procedimento legalmente em cidades que oferecem esse serviço. Estão na rota internacional México, Colômbia e Argentina, que aprovou a legalização do aborto em 30 de dezembro.

Por viabilizar entenda-se ajudar com orientações sobre onde e realizar o procedimento, acompanhar a viagem, ainda que à distância, ou mesmo arcar com os custos de passagem, estadia e procedimento em si, cujo valor é de, no mínimo, US$ 700 (cerca de R$ 3.800), segundo Juliana. Os gastos são cobertos por meio de doações.

"Quem doaria milhas para ajudar uma mulher a abortar?"

A ideia do Milhas surgiu em 2017, quando Juliana conheceu a história da brasileira Rebeca Mendes Silva Leite, que pediu ao STF (Supremo Tribunal Federal) autorização para abortar legalmente por não ter condições econômicas e emocionais para ter um filho. Após o pedido ser negado, Rebeca realizou o procedimento na Colômbia, com o apoio de uma ONG.

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Rebeca Mendes Silva Leite, que pediu ao STF autorização para abortar em 2017
Imagem: Debora Diniz

"Foi o primeiro aborto fora do armário do país. Pela primeira vez, falou-se do assunto não pela coragem de uma mulher famosa que conta o que fez há 15 anos, mas é como se aquele aborto estivesse acontecendo ao vivo e a cores. Isso me tocou demais", conta Juliana que, comovida, postou no Facebook a pergunta: "Quem toparia doar milhas para ajudar outras mulheres a fazer aborto legal na Colômbia?". Recebeu cinco likes.

"Em maio de 2019, li uma outra notícia sobre uma mulher que queria abortar e fiz outro post, mas dessa vez com 5.000 likes e 1.200 ofertas de milhas", conta, ressaltando a mudança na recepção do tema por parte das pessoas ao seu redor. "A diferença de um momento para o outro é que estão baixando o nosso teto", diz, referindo-se ao avanço fomentado principalmente pelo governo Jair Bolsonaro (sem partido) sobre as mudanças das regras para aborto no Brasil.

Para Juliana, foi o aumento da pressão contrária ao aborto, portanto, que incitou maior mobilização. E é o que vai continuar movendo, na sua opinião, o Brasil rumo à flexibilização das leis a partir dos movimentos que apoiam o direito da mulher em decidir sobre gravidez.

"A lei que vai descriminalizar o aborto aqui precisa se chamar Damares", diz, referindo-se à ministra da Mulher, Família e Direitos Humanos. "Graças a ela chegamos ao nosso limite e percebemos que precisamos reagir", afirma. "Além disso, há uma América Latina inteira avançando. Criminalizar o aborto começa a virar uma piada."

Projeto já acompanhou 214 mulheres

Com o início do projeto, Juliana começou a organizar e planejar como a ajuda seria feita. Primeiro, colhendo as milhas oferecidas pelos doadores. Depois, passou a receber doações financeiras por meio de sites, como o Benfeitoria, plataforma que reúne projetos de ações sociais para apoio mensal. Até a última sexta-feira (15), já havia arrecadado R$ 4.500 - a meta do mês é R$ 6.500. Também tem apoio de artistas e estilistas que doam valores referentes a vendas de obras e criações.

A ajuda com os custos das viagens varia de acordo com a situação da mulher, que responde um formulário com questões sobre seu perfil e situação da gravidez ao entrar em contato com o Milhas. A partir de então, busca-se a melhor solução para cada caso.

Juliana conta que, no planejamento inicial, a perspectiva era ajudar 20 mulheres em um ano e meio. Mas o número foi dez vezes maior: desde a criação do grupo, 214 mulheres foram auxiliadas para poder realizar o procedimento. Dessas, 138 foram dentro do Brasil.

"Nos casos previstos pela lei brasileira, também oferecemos esse auxílio financeiro, para garantir o acesso ao direito à escolha. A questão é que muitas delas, quando nos abordam, nem sabem que podem abortar legalmente aqui", diz. Os casos permitidos no Brasil incluem gravidez decorrente de estupro, gestação com risco à saúde ou à vida da mulher ou o feto com anencefalia.

Juliana relembra que a primeira viagem de uma mulher atendida pelo Milhas integralmente foi também a primeira vez que ela andou de avião, para a Colômbia. A ajuda de custo foi desde a obtenção do passaporte.

Mas, fora a parte do suporte financeiro, o grupo também presta apoio e dá informações necessárias sobre onde abortar, valores e como proceder. Considerando também as mulheres acompanhadas por esse tipo de auxílio, já receberam 1.700 pedidos de ajuda.

"Uma das coisas que mais me abalam é me dar conta de quantas delas têm em mim a única interlocutora para tratar do que está acontecendo na vida delas, pois não podem confiar em mais ninguém", diz. "Já tivemos muitas pró-vida pedindo socorro."

Somente em 2021, até o dia 12 de janeiro, ela já havia recebido 106 solicitações. "São mais de dez por dia, mulheres que estão ansiosas, angustiadas." Das que auxilia, recebe mensagens de agradecimento e doações para que outras possam ser ajudadas. "Para cada uma que bancamos, outras quatro ou cinco serão amparadas depois."


Com legalização na Argentina, projeto agora é fretar ônibus

Das 76 viagens ao exterior, os países de destino foram Colômbia, México e Argentina. Esse último, inclusive, antes da legalização do aborto, no final do ano passado. Isso porque, como explica Juliana, a lei na Argentina já permitia, além das mesmas situações autorizadas no Brasil, abortar em caso de risco ao bem-estar físico e psíquico da mulher. O mesmo vale para a Colômbia. "Esse já é um espectro bem mais generoso e acolhedor para as mulheres." No México, a prática é legalizada desde 2007.

"Temos clínicas parceiras nesses locais, inclusive para cobrar preços mais baixos de uma pessoa que viaje com nossa mediação. Desenvolvemos uma relação de muita proximidade e colaboração", diz Juliana, que celebra a recente decisão do governo argentino de legalizar o aborto.

Com a pandemia de covid, porém, as fronteiras do país estão fechadas. "Ainda não provamos esse exercício pleno da legalidade argentina. Mas já estamos preparando uma operação que não será milhas, mas quilômetros pela vida das mulheres. Vamos organizar viagens de ônibus, pegá-las em suas cidades e viajar para lá."

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Ativistas celebram decisão do Senado que aprovou legalização do aborto na Argentina
Imagem: Ronaldo Schemidt/AFP


"Tudo que fazemos é absolutamente legal"

Juliana salienta que o Milhas está blindado juridicamente, uma vez que a criminalidade do aborto imposta pelo Estado brasileiro só vale em território nacional. Aqui, para a gestante, a pena vai de um a três anos. Para uma terceira pessoa que provoca o aborto com o consentimento dela, é de um a quatro anos.

Porém, se realizado em outro país, a lei deixa de valer e não se configura crime. "Não configura incitação ao crime, isso quem faz é o Eduardo Pazuello, ministro da Saúde, quando dificulta mulheres a acessar o aborto legal no país, com objeções de consciência e portarias", diz.

"O cardápio do aborto para a mulher brasileira sempre existiu, e desde muito antes do Brasil existir, com práticas de raízes indígenas", explica Juliana, que fez três abortos durante sua vida. O primeiro aos 19 anos. O segundo aos 29, na França, quando ela já tinha uma filha. "Lá é legalizado, foi reembolsado pelo seguro social, com dias de descanso, é outra experiência", conta. E o terceiro aos 39, em uma gestação desejada, ao descobrir que o feto apresentava má-formação.

"São três situações muito distintas, que me qualificam, humanamente falando, para estar junto dessas mulheres que recebo hoje. E me qualificam para ter uma convicção de que opiniões sobre aborto, a sua, a minha, qualquer que seja, não têm relevância. A única opinião sobre aborto que tem algum sentido é a da mulher para decidir se vai realizar o procedimento ou não."