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"Fiz aborto na França e fui respeitada", diz brasileira. País vota lei hoje

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Imagem: iStock

Elisa Duarte

Colaboração para Universa, de Paris

20/01/2021 04h00

Nesta quarta-feira, 20, o Senado francês examina a extensão do prazo do aborto legal de 12 para 14 semanas de gestação. A lei Veil, em homenagem à autora Simone Veil (1927-2017), ex-ministra da saúde do país, entrou em vigor em janeiro de 1975, e teve a primeira modificação em 2001, quando o prazo para a realização do aborto foi estendido de 10 para 12 semanas.

Na França o aborto é um direito garantido para todas as mulheres, sejam elas francesas ou não. Brasileiras radicadas no país se organizam para que a discussão sobre a interrupção da gravidez indesejada ganhe cada vez mais adeptas em movimentos organizados pelas redes sociais, como o #EuFiz. Dentre essas mulheres, está a estudante brasileira Angélica*, de 25 anos, que vive na França e conseguiu fazer um aborto legal.

Ela contou a Universa detalhes de como foi atendida por lá.

"Anos no Brasil me condicionaram a encarar o aborto como um beco sem saída"

"Recentemente me descobri grávida. Eu não queria, mas aconteceu e meu mundo caiu. Fiz um teste de farmácia, já que minha menstruação estava atrasada há quatro dias, mas pensando que nem fosse dar positivo. Mas deu.

Minha primeira reação foi chorar de desespero. Até então, engravidar era a pior coisa que poderia acontecer na minha vida. Estava completamente fora dos meus planos. A maternidade não me atrai em nenhum aspecto, apesar de gostar muito de criança. Vivo com duas pequenas, filhas do meu namorado. Amo as duas mais do que tudo, mas viver com elas e amá-las só me deu mais certeza ainda de que eu não quero ter filho. A responsabilidade, o estresse, o custo, a dedicação, os comprometimentos e sacrifícios...

Talvez não querer ser mãe seja mesmo egoísmo como muitos dizem, e que seja. Eu me sentiria muito mais egoísta em colocar uma criança nesse mundo, ainda mais com tantas crianças que já estão aqui.

Eu já sabia que na França o aborto é legalizado e gratuito. Conversei com meu namorado, e, assim como eu, ele também entendeu que não havia condições para um filho em nossas vidas. Porém, meus anos de Brasil, me condicionaram a encarar o aborto como um beco sem saída. Algo traumatizante. Marquei uma consulta com meu médico para a segunda-feira seguinte. Saber que eu passaria mais dois dias sem saber o que fazer ou como fazer foi horrível.

Fiquei mal na véspera do aborto. No dia do procedimento, o medo de ser julgada me dominou. Mas isso não aconteceu. O médico não esboçou qualquer reação negativa. Foi compreensivo, sério e direto. Me prescreveu um exame de sangue para confirmar a gravidez. Teste feito, resultado poucas horas depois, gravidez confirmada: primeiras semanas, muita margem para o aborto seguro. Um alívio...

Fui transferida diretamente para o setor de planejamento familiar, onde fui bem atendida por uma mulher que me perguntou a data da minha última menstruação. Disse que por eu estar com uma gravidez muito recente poderia fazer o que eles chamam de 'interrupção voluntária' (interruption volontaire de grossesse, ou IVG) em casa, com medicamentos. Isso pode ser realizado até 7 semanas, segundo a legislação francesa. Ela me passou ainda três números de médicas ou enfermeiras que trabalham com IVG na minha cidade, porque o procedimento no hospital só é realizado no caso de gestações mais avançadas.

Liguei para o que era mais perto da minha casa e, mais uma vez, fui bem atendida. A atendente me disse que talvez fosse cedo demais, que o mais adequado seria esperar mais uma semana. Fiz o que ela aconselhou e marquei para a segunda-feira seguinte.

Foi esquisito passar mais uma semana grávida. Mas eu já estava muito mais tranquila, o desespero havia passado e restava apenas a ansiedade de voltar à vida normal. E mais uma vez o medo de ser julgada, herdado de uma vida num país onde abortar é errado e sujo, me deu um nó no estômago. Mas ao entrar no consultório e ver o sorriso reconfortante da médica, que leu a apreensão imediatamente no meu rosto, percebi que eu não estava fazendo nada de errado.

Ela me perguntou aquelas coisas básicas: alergias, histórico de doenças, cirurgias, medicamentos... me perguntou sobre contracepção, detalhes de como cheguei a engravidar, mas jamais dando lição de moral ou desaprovando. Conversamos sobre os diversos métodos e encontramos o mais indicado para mim. A médica me disse que a IVG não afetaria em nada minha fertilidade, meu corpo, meus hormônios e nem nada, mesmo que eu fizesse 10, mas que isso não deveria ser usado como forma de banalizar o aborto e não se proteger.

Depois passamos à ultrassonagrafia, que durou alguns segundos com um bastão enfiado na minha vagina, mas nada doloroso ou desconfortável e ela logo deu o resultado: 5 semanas e 4 dias. Tudo certo pra IVG medicamentosa à domicílio.

Antes mesmo que eu pudesse subir a calcinha, ela já perguntou: 'Você está pronta para finalizar sua gravidez hoje mesmo?' Respondi: 'Claro que sim!'. Ela me deu um copo de água com 3 comprimidos. Era para tomar os 3 ali mesmo no consultório. O outro, levei para casa para tomar dois dias depois, na quarta-feira ao acordar. Os três primeiros foram para abortar, e o último para expelir o embrião.

A médica me explicou tudo poderia acontecer naquele mesmo dia: sangramento com coágulos grandes, cólicas bem fortes, muito cansaço. Poderia comer e beber normalmente, mas deveria ficar em casa na companhia de alguém maior de idade e sem fazer esforços. Não deveria me desesperar com o sangramento e a ansiedade seria minha pior inimiga. Tudo isso é normal e esperado, a menos que ocorram desmaios ou que o sangramento não pare mais. Nesse caso, ela me deu o número pessoal de celular dela para entrar em contato.

Além disso ela me prescreveu analgésicos bem fortes, em caso de ter uma dor realmente insuportável. Disse que normalmente a dor do aborto é proporcional às dores das cólicas menstruais, mas isso pode variar muito de mulher para mulher.

Tudo isso foi falado e escrito em um papel que eu levei para casa. A médica pediu um exame de urina para verificar possíveis infecções e deixou uma receita para o exame de sangue que seria feito em 15 dias, quando eu voltaria para acompanhar o resultado do aborto. Me preveniu que o exame de sangue daria positivo para gravidez e eu não deveria me desesperar, pois é normal. A falha da IVG é de 3%, mas a médica me contou que em toda a sua carreira, nunca viu um caso de falha, e ela faz isso literalmente todos os dias.

Depois do procedimento caseiro, passei o dia quietinha no sofá. Parecia que eu tinha corrido uma maratona. Quinze dias após o aborto, decidi colocar um DIU e tive um susto. Após complicações inflamatórias geradas por erro médico - a ginecologista fez a ecografia depois de colocar o DIU o que impediu de visualizar o útero em seu diagnóstico - foi necessária uma curetagem para a retirada de resíduos do aborto que não haviam sido totalmente expelidos.

Às 9 da manhã, eu estava feliz e aliviada com meu DIU inserido e meu aborto completo, pronta para deixar isso tudo pra trás. Ao meio-dia eu estava deitada numa cama de hospital aguardando a anestesia geral a caminho da curetagem. Tive que fazer o teste do COVID-19, teste de sangue completo e o beta-HCG. Tudo de uma vez. Felizmente, a cirurgia se passou bem, acordei sem dores e fui para o quarto. Fiquei em observação por algumas horas e pude ir embora por volta das 20h.

Dói quando penso em todas as mulheres que morrem no Brasil e em todas as crianças indesejadas que nascem, quando tudo poderia ser resolvido com um exame de sangue e 4 comprimidos.

No Brasil, o aborto é permitido em caso de estupro, risco de morte para a mãe ou malformação grave do feto. É injusto. Se focarmos nas questões médicas, é fácil de fazer. É psicologicamente exaustivo, emocionalmente desgastante e fisicamente agressivo, mas para as mulheres que fazem isso ilegalmente, sem apoio e gastando um dinheiro que elas não têm, é um milhão de vezes pior. Sem contar que eu passei por tudo isso sem desembolsar um único euro - seja para os exames ou para as consultas médicas e medicamentos."

*A pedido da entrevistada o seu nome e a sua profissão foram alterados.