Marina Dias: "Toda mulher que escolhe não ter filhos é questionada"
Quando vivia o auge na carreira como top model, com 20 desfiles programados para a Semana de Nova York, a paulistana Marina Dias, 44, assistiu aos ataques terroristas às torres gêmeas nos Estados Unidos, em 2001. Depois disso, viu o mercado mudar e se tornar mais conservador: perdeu campanhas, sentiu o preconceito. "O grupo das meninas de atitude, da qual faço parte, perderam mercado para as meninas mais comerciais", conta.
Marina sempre fez parte do time das transgressoras. Quando o mundo se voltava para belezas mais clássicas, como a de Gisele Bündchen, Marina surgia na passarela toda tatuada, piercing no mamilo, jeitinho de quem gosta mais da noite do que do dia - embora atualmente ela costume acordar às 6h para praticar ioga. Hoje, a modelo paulistana que representou grandes marcas nacionais e internacionais como Alexandre Herchcovitch, Versace e Dior parece estar vivendo um déjà vu na carreira, agora como DJ e artista plástica.
"Passam-se 20 anos desde que fui diminuindo mais meus trabalhos como modelo e me dedicando mais à música eletrônica. Estava no melhor ano como DJ, com vários trabalhos confirmados, viagens marcadas para tocar fora pela primeira vez, e aí veio o isolamento. Às vezes, o universo faz com que você tenha que encontrar jeitos para lidar com as dificuldades", reflete.
Mantendo a mente saudável durante a quarentena cuidando de gatos que ajuda a resgatar e trabalhando como ilustradora, a DJ que posou para a "Playboy" também cogita revisitar a carreira de modelo. "Estou aberta para mostrar uma nova cara da Marina, não mais a modelo de 20 anos, mas essa mulher centrada, saudável que acho que as pessoas ainda não conhecem".
A Universa, Marina fala sobre essas e outras escolhas de sua vida e carreira.
UNIVERSA: Quem era a Marina Dias aos 15 anos, quando começou a carreira de modelo? Já tinha noções de feminismo, conseguia identificar o assédio?
MARINA DIAS: Não sou a pessoa que leu a respeito de feminismo. Fui criada para ser livre, especialmente pelo meu pai. Tivemos alguns problemas quando comecei a me tatuar ou quando saía com uma roupa muito andrógina. Óbvio que ele queria ter uma menina, filhinha, colorida, e tudo bem. Mas ele nunca me segurou. Ele me criou para não ter medo de fazer as coisas que quero, independentemente de como os outros vão me julgar.
Não sofri assédio. Sempre tive uma atitude muito forte e acho que os assediadores ficavam intimidados. Mas senti outros tipos de preconceito.
Apesar de ser branca e magra, era uma menina tatuada há 20 anos, e ainda não encaixava no padrão. Mas sei que esse preconceito não se compara a um abuso ou misoginia.
Você já perdeu trabalhos por causa das suas tatuagens? Sente um mundo menos preconceituoso hoje?
Estamos passando por duas coisas. A gente está vendo o patriarcado não se sustentar mais, porque sabemos que a força da mulher é muito maior do que se pode imaginar - e tem uma comunidade trans que cresce e vai contra o movimento cis, são várias coisas sendo quebradas. E tem um movimento retrógrado vindo em sentido oposto, tentando manter o mundo velho do jeito que sempre foi, careta, liderado por uma parcela pequena e poderosa da população. São duas coisas lutando agora.
Você sempre fez o que quis, rompeu padrões nas passarelas. E também escolheu não ter filhos. Você é muito questionada por suas escolhas?
Toda mulher que escolhe não ter filhos é questionada por essa decisão. Eu adoro criança, amo. Me divirto com elas, mas desde muito nova eu sabia que não queria ter filhos. Quando fiz 36 anos, dei uma debatida. Pensei: agora eu tenho poucos anos para decidir se quero mesmo. Não queria ter o problema de ficar velha e pensar: "Ah, deveria ter tido um filho".
Pensando a respeito, decidi que continuo não querendo ter a responsabilidade de colocar uma criança num mundo tão desigual. Isso sempre foi algo que me doeu muito. Você nunca vai ter certeza do que vai acontecer com seu filho.
Nunca vai poder preparar ele para esse mundo que está aí fora, que a meu ver não deu certo. Faltou mais humanidade.
Quando a gente chega por volta dos 35 tem muita pressão por essa decisão, inclusive de ginecologista, falando que estamos passando da hora. Aconteceu com você?
A decisão nunca é do seu médico, mas sua. E é esse o problema do controle sobre o corpo da mulher.
Os outros sempre acham que sabem o que vai ser melhor para o corpo de uma mulher do que ela mesma.
Seu médico sabe se é melhor você ter filho ou não, seus pais, seu marido. E você? Eu tinha vontade de fazer o processo inteiro, de engravidar, fazer o parto natural, mas não tenho vontade de colocar uma criança nesse mundo. E dane-se a pressão. As mulheres têm que começar a cortar o mal pela raiz.
Cada vez que alguém falar: 'ah, mas tá ficando velha', responda: 'aos olhos de quem?' Tem mulher aí engravidando aos 40...
Você tem feito posts com críticas à situação do Brasil, ao presidente Jair Bolsonaro. Já tinha se decepcionado tanto com o país antes?
Politicamente, não. Tenho uma boa memória política. Sou de família extremamente politizada. Meu pai me carregava para manifestações do Diretas Já. Lembro de uma época em que as pessoas recebiam salário e tinham que ir correndo comprar comida porque a inflação era tanta que se fosse deixar para o dia seguinte você só ia comprar metade das coisas. Era gente passando fome, a nossa moeda não valia nada. E o Brasil não era respeitado internacionalmente.
Querendo ou não, a gente viu um crescimento lindo. O país virou potência, todo mundo investiu. Todo mundo que é empresário hoje abriu empresa naquela época boa e frutífera do país. Hoje, a gente tem um representante do país que fala com pouco respeito da sua própria população, tem uma postura tão feia. Tínhamos um cara que era analfabeto e falava com muita propriedade sobre as coisas, que tentava aprender, ia falar com especialistas. Hoje a gente tem uma visão tacanha de que se sabe de tudo, e isso leva a gente para o buraco.
Os últimos anos foram de transformação na indústria da moda, com cobranças por maior diversidade. Como você tem visto esse movimento?
A moda só vai sobreviver se fizer essa transição e conseguir mostrar que todos os corpos são bonitos e aceitáveis. Vivemos um padrão estético muito restrito. Não estou querendo dizer que as meninas passam fome para ser modelo. A maioria tem essa genética mesmo. Mas mostrar para o mundo que só isso é bonito, só isso pode carregar uma roupa é um erro, e causa problemas mentais, físicos, alimentares. Já vi amigos que tentavam fazer um casting mais diverso e não conseguiam, e sofriam muito com isso porque viam a beleza da mulher brasileira como ela é, mas não conseguiam encaixá-la no desfile porque queriam uma modelo padrão.
Agora essa mudança está sendo de cima para baixo, dos grandes designers. Tenho visto umas coisas muito bonitas, marcas de lingerie que fazem campanha com mulheres gordas, e isso a gente tem que começar a trabalhar, a maneira como a gente trata o corpo do outro.
Sobre o corpo alheio, mulheres ícone de beleza como Xuxa agora são criticadas por causa da idade. Aos 44, você também se vê criticada?
Minha pergunta é: por que quando a gente quer ofender alguém, procuramos um defeito físico, não de caráter? Por que chama alguém de gorda e velha ao invés de chamar de incompetente? Isso tem que mudar.
Críticas ao corpo é algo feito mais contra a mulher, para ela ser mantida sempre insegura, para assim ser controlada. É mais uma forma de abuso que existe. A gente ainda está descobrindo a fórmula de como vai fazer para derrubar padrões limitados, para mostrar que a mulher de 50, 60 anos é sexy, produtiva.
A maior parte das musas da nossa vida têm essa idade. Não me sinto velha. Estou super jovem.
Você escolheu comemorar seus 40 anos posando para a Playboy, há quatro anos. Essa decisão tem a ver com isso, para mostrar esse poder?
Não. Nem titubeei. Fui convidada e aceitei. Sou uma menina que cresceu amando todas as pin-ups e fotos sexy, e jamais diria não. Mas ela veio num dia muito importante. O teste da primeira revista veio exatamente no dia do meu aniversário de 40 anos. Achei uma boa forma de celebrar essa passagem.
Ao mesmo tempo em que estamos debatendo mais o corpo livre, vimos muitos procedimentos estéticos surgindo. Na sua avaliação, as mulheres estão se aceitando mais ou ficando mais escravas de plásticas?
Acho que rola um meio a meio. Tem muita gente tentando achar sua beleza naturalmente, se amar e se aceitar, e tem muita gente que quer ver seu corpo modificado. Temos que respeitar quem quer ser modificado, aceitar que as pessoas façam o que elas quiserem. A gente sabe que autoestima muda tudo na vida de alguém. Quando você sai de casa se sentindo bem, você se relaciona melhor. Isso não tem nada a ver com moda, mas com autocuidado, com você saber quem é, cuidar do seu corpo, amar seus defeitos e se aceitar. Ser mais doce com você. A tatuagem também é modificar o corpo. Escolhi um outro jeito de modificar o corpo que nasci. Achei que ele tinha que ter desenhos.
Se alguém acha que tem que ter o peito maior, quem sou eu para julgar? A pessoa tem que ser feliz.
Nos seus muitos anos como modelo, precisou lançar mão de privações para atender a demandas das passarelas?
Tenho sorte de ter essa genética. Não faço esforço para ter esse corpo. E deixo ele oscilar conforme as coisas acontecem. Sou uma pessoa que não fuma, não bebe, pratica ioga, come bem e acorda às 6h. E aprendi a comer bem depois dos meus 30 e poucos. Comia o que tinha que comer e não fazia muito esforço, hoje meu maior prazer é comer. Quando mais nova, não achava graça. Fui descobrindo coisas, que montar o prato bonito me faz ter vontade de comer. Comida não é só sabor: tem que ter o visual. É isso o autocuidado.
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