"Dizer que somos escolhidas por Deus é cruel", diz mãe de criança autista
"Sou ativista e luto contra a romantização da maternidade atípica desde que descobri que meu filho Theo, hoje com 12 anos, é autista. O momento em que eu me dei conta que era mãe de uma criança autista foi muito estranho, porque eu não sabia nada sobre o assunto.
O Theo nasceu um menino gordinho, fofinho. O primeiro neto dos dois lados. Ele se desenvolveu de forma normal até próximo do primeiro ano. Falou 'papai' com cinco meses, 'mamãe' com seis. Cantava trechos de músicas. Fazia imitação, dava tchauzinho. Chegando perto do primeiro ano, ele começou a ficar diferente.
Meu filho virou um bebê sério, não ouvia quando a gente falava com ele, não seguia instrução verbal. Parecia que ele tinha esquecido algumas coisas que fazia, como, por exemplo, bater palminha. A gente sempre interpretou isso como uma questão de personalidade, criança com 'gênio forte'. Eu e meu marido não tínhamos sobrinhos, não tínhamos amigos com filho, a gente não tinha parâmetro. A médica pediatra sempre falou que estava tudo bem, então a gente achava que era uma criança com audição seletiva que daria trabalho.
Próximo do Theo fazer dois anos, ele entrou para a escola. Com um mês de escola, a diretoria chamou a gente para uma reunião. Recebemos um relatório com várias características dele que não estavam de acordo com aquela idade - não fazia contato visual, não interagia com os coleguinhas, não olhava quando era chamado pelo nome, tinha risos inapropriados, fixação por objetos que giram, não seguia instrução verbal, agia como se fosse surdo.
Foi um choque muito grande, na hora que li falei para o meu marido: 'Estão insinuando que o Theo é autista'.
Após o relatório, levei o Theo à pediatra e ela entrou em negação, falou que ele não tinha nada, que ela tinha um paciente que era autista, que a criança entrava no consultório, sentava em um cantinho e ficava se balançando.
Basicamente a médica disse que ele era daquele jeito por ver muita televisão. Ou seja, ela falou que ele tinha essas questões porque eu não o estimulava devidamente. Foi aí que eu descobri que essa é uma atitude muito comum: as mães são culpadas pelos médicos.
A gente não se conformou com aquela explicação e procuramos um especialista. Foi quando veio o diagnóstico de autismo - é um momento de sofrimento muito grande, que só quem passou por isso sabe. A minha geração não cresceu com a deficiência como parte da diversidade humana. Nunca tive amiguinhos com deficiência, eu não os via na rua, nos restaurantes, em lugar nenhum, porque na minha época, quando eu criança, os deficientes ou ficavam trancados dentro de casa ou eram institucionalizados.
Quando descobri que meu filho era autista, eu senti que aquilo era uma desgraça que tinha acontecido comigo, como se o Universo tivesse me sacaneado. Ficava me perguntando 'Por que eu? Por que o meu filho?'. É um período muito sofrido.
Um pouco depois do Theo ter sido diagnosticado, teve uma reestruturação na empresa onde eu trabalhava e eu fui demitida. Eu estava desesperada atrás de um emprego, quando parei e pensei 'bom, quem sabe não é a hora de ficar um pouquinho com o meu filho, entender mais desse negócio de autismo'. E aí foi que eu criei o blog Lagarta Vira Pupa, em janeiro de 2012.
Criei o blog para escrever minhas vivências
No site, eu registrava as minhas vivências e falava principalmente sobre os meus sentimentos. Lembro que o primeiro texto foi sobre como tinha sido o diagnóstico do Theo. Pensei 'só a família vai ler', mas o artigo teve quase 300 compartilhamentos no Facebook. Eu imaginava que ninguém ia ligar para o tema, mas rapidamente o blog começou a crescer e eu comecei a receber mensagem de mãe do Brasil todo - e até de fora do país.
Assim passei a entender como é comum esse sentimento que tive no início. Comecei a entender como que faltava assistência para essas mães, que muitas vezes são abandonadas pelos companheiros (tem uma estatística que diz que há abandono paterno em 78% dos casos em que o filho é diagnosticado com uma doença rara), abandonadas pela própria família e não são acolhidas pela sociedade. Percebi isso na pele, quando meu filho teve a matrícula recusada em uma escola com apenas dois anos de idade.
Ser mãe de uma pessoa atípica é um ato político
A verdade é que a sociedade ainda não sabe acolher as diferenças mesmo que ela esteja em todos os locais - diferença de gênero, de orientação sexual, de cor. São várias formas de não saber lidar com a diferença. Logo o blog foi se desdobrando em outras coisas e adotando um tom mais politizado.
Em 2013, fui morar fora. Em 2014 quando voltei, eu conversei com mães e ouvi que elas não tiravam os filhos de casa, por medo do preconceito. Foi a primeira vez que organizei um evento ativista: um piquenique inclusivo. Reuni várias mães, combinei de nos encontramos em um parque de Belo Horizonte (de onde minha família é) com os filhos, assim, as pessoas teriam que engolir o fato de que portadores de deficiência também são cidadãos e têm direito a estar no espaço público.
Na semana seguinte, fiz o mesmo evento aqui em São Paulo, no Parque Ibirapuera, reunimos 350 pessoas. No final de 2016, quando voltei de vez ao Brasil, já estava mais consciente de como não dá para separar essa coisa de ser mãe de uma criança com deficiência do ativismo, com o que acontece na política e em 2018 me candidatei como deputada federal pela primeira vez. Estava sem nada, sem dinheiro, com marido desempregado e recebi mais de 43 mil votos.
Não parei mais de realizar os eventos. Depois do piquenique teve o arraial inclusivo. Em 2020, antes da pandemia, fizemos o primeiro carnaval inclusivo na frente da Câmara Municipal de São Paulo, reunimos mais mil pessoas. No final do ano passado resolvi unificar todas essas ações e dar mais corpo a isso, criei então o Instituto Lagarta Vira Pupa.
No Instituto, temos rodas de conversa, eventos beneficente, assistência jurídica e psicológica. O lema de lá é 'cuidar de quem cuida', porque cuidando de quem cuida, a gente vai acabar cuidando da pessoa com deficiência também. É tão triste porque você vê essas mulheres com a saúde mental muito abalada.
Eu já socorri mulheres que ameaçaram pular do prédio com o filho no colo. Isso é uma coisa constante, tem mãe que tenta o suicídio. Essa romantização da maternidade atípica de que 'somos mulheres escolhidas por Deus' é cruel. As mulheres ficam abandonadas, porque fica no imaginário popular de que elas realmente não precisam de ajuda, que elas são especiais, então elas não se sentem no direito nem de ter depressão.
É muito confortável para o homem, porque ele simplesmente diz que não sabe cuidar, que não está preparado para ter um filho assim, e se manda, deixa a criança com a mulher. Muito disso é culpa da ideia de que o cuidado é uma coisa feminina.
Tem algumas noções que precisamos rever para que a vida seja menos injusta com essas mulheres. Elas se culpam por às vezes cansar, por às vezes perder a paciência, por às vezes falar 'meu Deus do céu, queria ir embora abandonar essa criança, essa casa, nunca mais voltar'. Tudo vira culpa para elas, todo mundo fala que elas dão conta. A gente fala que nós não temos o direito de morrer. E isso devia ser uma preocupação pública.
Grande parte da população de rua tem transtorno mental. Tem uma pesquisa que foi feita na Inglaterra que eles chegaram à conclusão de que praticamente 10% da população em situação de rua tem sintoma de autismo - e eles nem mapearam outras condições, tipo bipolaridade, esquizofrenia. Quando uma mãe atípica morre, ela vai parar na rua porque nenhum parente quer cuidar. O pânico de qualquer mãe atípica é quem vai cuidar do meu filho depois que eu morrer. Precisamos de políticas públicas urgentemente.
Hoje o Theo tem 12 anos e eu 45. O que eu falo para as pessoas é que ele nunca vai ser independente. Ele é autista nível dois e precisa de ajuda para muita coisa. Eu e meu marido tentamos trabalhar para deixar alguma coisa pra ele, de reserva. Além disso, tento me cercar de gente boa, porque eu tenho certeza que essas pessoas não vão deixar o meu filho passando necessidade."
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