Ela fala de candomblé nas redes até em iorubá: "Ancestralidade me buscou"
Suellen Massena, 29, é modelo, figurinista e fala de axé no Instagram. Iniciada no candomblé há cinco anos, ela produz vídeos na rede social para quem quer dar uma pausa na rotina, se conectar com os saberes ancestrais africanos ou se lembrar de tomar água durante o dia — as mensagens de bom dia de Suellen quase sempre vêm com esse lembrete. No meio do isolamento social, resolveu ser "conselheira de reels", aqueles vídeos curtos da plataforma.
Preenche os dias de seus quase 62 mil seguidores com mensagens de sabedoria retiradas de um livreto escrito por Mãe Stella de Oxóssi, de suas próprias vivências e dos ditados populares que escuta por aí - ou, ainda, de sua mãe, que "se não tem um ditado para aquela situação, ela cria". Ditados iorubás e as histórias e ensinamentos faladas pelos mais velhos e nas ruas, algo muito comum à cultura afro-brasileira, também fazem parte de seu repertório.
Tudo é traduzido em pequenas frases como "Gato que persegue dois ratos simultaneamente, certamente não pegará nenhum" ou "Trate a sarna ao invés de se entreter coçando". Do outro lado das telas, surgem comentários como "essa bateu", "sempre certeira nos versos", "essa cabe muito para o dia de hoje".
De Salvador, sua cidade natal, Suellen conversou com Universa sobre o lugar que ocupa na naturalização da cultura das pessoas do axé e na visibilidade que tem enquanto mulher, preta, modelo, figurinista e yawo. Confira os principais trechos da entrevista.
UNIVERSA - Por que você decidiu falar de candomblé no Instagram? Seu perfil se tornou um lugar de acolhimento para as pessoas do axé?
SUELLEN MASSENA - Quando comecei a fazer os vídeos, não fazia ideia de quem estava vendo, e pensava que eram só para as pessoas próximas a mim. Falar de axé era um assunto natural, porque é o que eu vivo. Levei um tempo para entender que o que estou fazendo é uma reconstrução da imagem do axé: Uma preta, iniciada numa casa de axé da Bahia, que fala de ancestralidade de maneira simples, falando o que nossos pais e avós falavam. Falo das coisas que acontecem no dia a dia e o que eles diziam, que às vezes não associávamos ao ancestral, e que hoje vemos que era, sim. Talvez nem eles soubessem, mas tinha um fundamento religioso.
Quando falo um provérbio, existe um porquê. E ao levar isso para o dia a dia, tudo que foi construído pelo racismo diante das religiões de matriz africana é quebrado, porque é uma mulher preta falando, com leveza.
Agora, como você lembrou, ontem foi dia contra a intolerância religiosa, e aí acontece algo parecido com o que acontece no dia 20 de novembro: pessoas nos buscarem para falar a respeito. Só que quem é de axé sofre com intolerância religiosa o tempo todo, não é só neste momento que deve ser lembrado.
Coisas do dia a dia que a gente vem denunciando o tempo inteiro, a mídia só procura a gente para falar nesse momento. Em 20 de novembro, só nos procuram para falar de racismo e questões raciais perto da data.
Você recebe hate nas suas redes sociais?
Ainda bem que não recebo, graças aos orixás. Recebo muita mensagem positiva, principalmente mulheres agradecendo pelo trabalho e dizendo que esperam meu bom dia para acordar. Alguns dizem que a frase que li acalmou, serviu para esclarecer, porque estava tendo uma crise de ansiedade; e não é só a frase, é minha leitura a respeito daquilo.
Como foi sua iniciação no candomblé e de onde veio a ideia de falar disso nas redes sociais?
Nenhuma preta vai buscar por si só, é sempre um chamado. A ancestralidade me buscou, minha família tem contanto com o candomblé, e sou iniciada há cinco anos. Desde os meus 23 anos, venho entendendo a importância da iniciação, que é o contato que eu tenho com minha ancestralidade, uma reconexão, um alinhamento de vida. Acontece de a gente se religar, que é o significado de religião, aliás.
Eu comecei a fazer os vídeos sobre o tema de forma natural. Ganhei de presente o livreto Òwe [escrito por Mãe Stella de Oxossi, com frases em iorubá com interpretações da autora] da ialorixá Nilzete Cardoso antes mesmo de eu me iniciar. Ela disse que ele me nortearia, e eu sempre carreguei como um livrinho de bolso. Aí, no meio da pandemia, comecei a postar trechos no Instagram. E comecei a explicar as coisas de dentro do axé com ditados populares.
Por exemplo, quando dizemos da "importância de cuidar do ori", eu trago a frase "sua cabeça é seu guia" para explicar. Porque é tudo uma coisa só. Sempre falei do candomblé, em textos, fotos, para refirmar o quanto é natural e bom ser de axé. Há uns cinco meses, resolvi fazer um reels no Instagram, e os vídeos tiveram outro alcance.
As pessoas começaram a pedir para que eu aparecesse de manhã, porque a mensagem trazia paz, aliviava o dia. Pessoas até de outras religiões, evangélicas, por exemplo.
O penúltimo vídio deve atingir 1 milhão de visualizações. É o que eu falo sobre só quem carrega o próprio balde sabe o valor de cada gota d'água, ou seja, é falar sobre a gente valorizar nosso próprio corre.
As pessoas chegam à minha rede com perspectivas diferentes, e a gente conversa a respeito. Aprendo junto com quem ouve, vira um lugar de conexão. Quem é do axé sabe do que eu estou falando, e quem não é sente de onde vem. E não falo todos em iorubá, porque não sou fluente, gostaria de ser, aliás, acho que deveria ter no colégio como forma de nos reafirmar.
E, sou uma mulher jovem, preta, modelo, que tem o cabelo crespo do tipo 4c. Tudo em mim é político e tem a questão da representatividade. Chegam vários públicos, meninas para falar de cabelo, que querem ser modelo.
A cultura africana e afro-brasileira são baseadas na oralidade. Quais são suas fontes para resgatar os provérbios e as falas em iorubá?
O livreto é da Mãe Stella de Oxossi, que não tem nem como duvidar. Além disso, falo nos vídeos as frases que minha mãe já falava e as que ouvi dos mais velhos, dentro do axé. Hoje já não uso tanto o livro, utilizo essas frases que vêm da minha vivência, do período que passei no terreiro.
Como você tem mantido sua prática no candomblé durante a pandemia?
A minha casa de axé, Casa do Mensageiro, fica em Salvador e eu estou morando em São Paulo. Vou a Salvador em momentos específicos, final e começo de ano, para estar em comunhão fisicamente, porque na verdade o elo não se desfaz. Estou aqui em Salvador porque trabalhei como assistente de figurinista no projeto da Wolo TV [conteúdo de streaming focado na população negra] e estou fazendo o figurino de outro projeto audiovisual.
O candomblé tem a questão de colocar as mulheres no centro, como protagonistas. Quais são as mulheres que te inspiram e como elas te trouxeram até onde você está hoje?
Minha mãe, Maria Massena, é minha maior referência, falo dela na maioria dos meus vídeos, porque ela é a rainha do ditado; se não tem um ditado, ela vai criar para a situação caber. Tenho um pai superpresente, mas ela foi a referência de quem cuidou de três filhas, Suzana, Suzane e eu. Nós três somos modelos internacionais. Mãe é quem gesta, tem a ligação umbilical, e dentro do axé a gente reforça isso. Além disso, fui presenteada com outras mulheres, minhas irmãs com quem tenho relação sólida, mulheres de axé, como Suiede Kintê, Daisy Osunduni, que é uma iakekerê jovem, além de Carol Barreto, Tati Cassiano e Luana Galdino. E é bom ver que elas também me veem como um exemplo de força.
Se o protagonismo das mulheres negras fosse replicado em outros espaços na nossa sociedade, nossa realidade seria diferente?
Com certeza. Tem uma mulher em Salvador que picha pelas cidades: "Deus é uma mulher negra". E eu não tenho dúvidas que mulher negra é revolução. A gente acolhe de outra maneira, por mais que não coloque um filho no mundo, e está tudo bem com isso, a gente olha de outra forma, como alguém que sente, cuida, ajuda a curar e dá esporro quando necessário.
Vivemos em um momento em que se fala muito do autocuidado estético. Mas também há uma procura por se reconectar com o interno, com a ancestralidade. Como você vê essa questão?
Sou modelo, não tenho como negar que também cuido do corpo. Quero manter o cabelo bonito, a pele boa, o corpo ok. Seria hipocrisia dizer que não. Mas, a ancestralidade me fez olhar para o corpo como um templo. O espiritual também tem que estar cuidado, senão vou olhar no espelho e não vou enxergar com leveza.
Isso passa até pelo alimento que eu escolho, por eu evitar tomar remédio, preferir chás. E é isso, eu indico um creme interessante, falo de ervas que são boas para o corpo físico. Nada está dissociado. Sou modelo, figurinista, filha, yawo. O ocidente diz que se é uma coisa ou outra. Mas por que tem que ser assim, se eu faço todas as coisas bem?
O estilista Isaac Silva lançou uma coleção de roupas com a frase "Acredite no seu axé". O candomblé é essencialmente uma religião popular. Acha que com esse tipo de frase, ele está ficando mais pop?
Eu trabalhei como assistente de estilo do Isaac, e sempre estou com ele, fazendo desfile ou ajudando nessa área. Não é que esteja se tornando popular, mas estamos ressignificando, quebrando barreiras e preconceitos que o candomblé sofre. Depois que eu me iniciei, descobri que muita gente era do candomblé, mas não fala. Claro que tem gente que está lá por causa do hype.
Mas tem pessoas corajosas que assumem uma postura para mostrar que não têm problema de falar de Exu, de Oxum. Estamos construindo esse lugar de resgate.
E eu adoro essa frase "Acredite no seu axé". Porque ela diz para quem é de axé, mas também fica como "Se você não é do axé, você vai acredita no seu axé, no seu amém, o que for".
As mulheres ainda sofrem muitas violências. Ao mesmo tempo, estamos mais fortalecidas por movimentos de luta. Como acredita que a sociedade nos enxerga?
Antes, eu achava que a sociedade não estava pronta para a mulher; agora, vejo que ela se põe num lugar defensivo contra nós, principalmente quando nos unimos. E ainda mais a mulher negra. Mas também acho que a maneira como nos compreendemos muda o olhar do outro sobre a gente. Há um tempo, eu não me enxergava, por exemplo. Hoje, vejo a deusa que sou. Coloco nos Stories: "Já alimentou sua deusa hoje?". Que é para a pessoa alimentar a si mesma. Se eu não me tratar como tal, a sociedade não vai me tratar.
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