"Não amar filho é tabu da maternidade", diz autora do best-seller O Impulso
Como é a vida de uma mãe que não ama seu filho? Difícil imaginar a resposta já que mulheres são ensinadas desde muito cedo a entenderem a maternidade como algo natural e a esperarem uma conexão instantânea com o bebê, desde o instante em que se descobre grávida. Nos casos em que o afeto não aparece, provavelmente isso não será dito em voz alta.
No romace "O Impulso" (editora Paralela) - best-seller canadense lançado esta semana no Brasil - a escritora Ashley Audrain conta a história de Blythe, que até tenta dizer ao marido, à sogra e às amigas que não conseguiu criar uma conexão afetiva com a filha. Mas nenhum deles quer continuar essa conversa. O livro já foi vendido para 35 países e teve seus direitos comprados para virar uma série, com o mesmo produtor do filme "História de um Casamento", indicado ao Oscar 2020.
Além de chacoalhar as certezas sobre um tema quase sagrado, "O Impulso" é um drama psicológico sobre uma mulher que quer ser a mãe que não teve, mas não consegue. O suspense aparece depois de uma trágica reviravolta na metade da história — Universa já leu o livro e conversou com a autora por telefone.
UNIVERSA - A conversa sobre maternidade real está cada vez mais comum, até em temas difíceis como depressão pós-parto. Mas a mãe, no seu livro, lida com uma questão de outra ordem: ela não ama a filha. Por que quis falar sobre isso?
ASHLEY AUDRAIN - É verdade, falamos agora mais abertamente sobre ser mãe do que décadas atrás. Mas há partes da maternidade que mulheres sentem que não podem falar sobre, têm vergonha, pensam que serão julgadas.
Se não há uma conexão com os filhos, as mães precisam fingir que ela existe. Isso pode trazer o sentimento de solidão, de isolamento. É um grande tabu da maternidade. Sempre pensei muito sobre essa ideia de o instinto maternal ter que vir naturalmente. Somos ensinadas a entender isso, que a mulher tem que querer e amar ser mãe.
Vejo a minha filha de 3 anos, por exemplo, ela já tem a sua boneca, que brinca como se fosse um bebê. Nós já estamos mandando essa mensagem da maternidade para ela. Há mulheres que não queriam ter filhos, sabiam que não seriam boas mães e têm mesmo assim, por fatores que fogem ao seu controle. O livro explora o que acontece se a intuição não for ouvida.
Em vários momentos da história, a protagonista se questiona sobre ser uma "boa mãe". O que essa constante autoavaliação mostra?
Essa é uma linguagem que usamos o tempo todo. Quando vemos uma mulher grávida e dizemos: "Você vai ser uma boa mãe". Eu disse isso para várias que vinham me falar que não se sentiam prontas. Mas é muito injusto dizer isso, pois significa perpetuar essa pressão sobre as mulheres de obviamente serão boas mães. E nem nos damos conta. Eu já mudei a maneira de falar.
Mas existe um significado para o que é ser uma "boa mãe"?
Penso muito nisso. Ser uma "boa mãe", entre aspas mesmo, é uma questão para se debater. Cada um tem sua ideia do que é. No meu livro, para a protagonista, é ser o que ela não teve. Para o marido dela, a referência é a mãe dela. Eu, por exemplo, em alguns dias me sinto uma boa mãe, em outros não. Dá para amar ser mãe e ter dias em que não queria ter essa responsabilidade, que queria escapar dessa obrigação.
No livro, a personagem tenta falar para as pessoas à sua volta que não tem uma relação de afeto com a filha. Mas assim que ela começa, o interlocutor muda de assunto, ou diz que o problema está nela. Maternidade é uma obrigação feminina?
É verdade, ninguém a escuta. O marido, a sogra, as amigas. O marido se sente no direito de ter uma boa mãe para sua filha, ele não quer ouvir a verdade da mulher porque é inconveniente, não vai tornar a vida mais fácil. Ele não quer lidar com a realidade e faz disso um problema da esposa. É um desequilíbrio de poder muito grande e acho que muitas mulheres vão se enxergar nessa situação.
Elas casaram, tiveram filhos, são financeiramente dependentes e a única escolha é ser quem esperam que elas sejam. Não dá para esperar que as mulheres vivam desse jeito. Além do mais, não há uma pressão equivalente a essa sobre os pais.
Muitos homens me escreveram dizendo que nunca tinham pensado na maternidade por essa lente antes e que vão ter conversas diferentes com suas parceiras depois de lerem o livro. A mensagem é: criem espaço para a mulher falar como ela se sente.
Seu livro está sendo lançado em 35 países de culturas muito diferentes, como Croácia, Noruega, China, Brasil... Ficou surpresa com a recepção que a história teve?
Fiquei maravilhada com essa quantidade de países. Eu escrevi de uma perspectiva norte-americana, não sabia como seria recebido em outros lugares, se haveria interesse por essa conversa. Foi fascinante ler as cartas que as editoras me mandaram, mesmo em países onde não se fala sobre maternidade tão abertamente. Nas redes sociais, já tenho recebido muitas mensagens de leitores, principalmente do Brasil e da Itália.
Você recebeu nove propostas de adaptação para cinema e TV. Como imagina essa personagem nas telas?
Conversei com vários produtores e escolhi David Heyman, que fez "História de um Casamento". Quando falei com ele e com sua equipe, quis ter certeza que a protagonista seria tratada com empatia. Não queria mais uma mãe ruim, ou uma mulher louca. A história não é sobre isso. A equipe entendeu.
O roteiro adaptado do meu livro será escrito por uma mulher e há várias outras mulheres envolvidas na área criativa. Tudo isso foi muito importante.
Blythe é uma personagem muito específica e é emocionante pensar que uma atriz dará vida a ela. O programa de TV americano "Bom Dia América" fez um post nas redes sociais perguntando aos leitores quem poderia ser. Sugeriram Emily Blunt e Carey Mulligan. Acho que fariam muito bem. Mas também poderia ser uma atriz a ser descoberta.
O livro foca na perspectiva da mãe, mas aborda também a visão da protagonista como filha. A relação entre mãe e filha também pode ter um lado sombrio?
Tendem a ser uma relação tensa por ser muito emocional. Há os dois pontos extremos: ou ama ou odeia a mãe. O que é muito interessante nessa relação é que temos proximidade com nossas mães, fisicamente e emocionalmente falando. Vemos coisas em nós que são iguais a elas e das quais não gostamos. E acho que quanto mais próximas somos das nossas mães, menos sabemos quem elas são. Não podemos saber quem elas eram como mulheres antes de nos ter. Ao rejeitar isso, nunca as entenderemos.
Essa discussão sobre quem é a mulher além da maternidade também aparece no livro. Muitas vezes, depois do parto, a identidade é resumida a ser mãe. Sua personagem parece viver um dilema após se separar do marido e perder contato com a filha.
Ela se perde, sim. Tem uma crise de identidade. Na vida a gente encontra quem é, nos sentimos seguras, confiantes, mas ser mãe muda isso. É muito fácil perder a identidade de quem você era antes de ter filho. É parte do perigo.
Algumas mulheres querem ser consumidas pela definição de ser mãe, e isso é maravilhoso. Mas outras não, querem continuar sendo quem sempre foram. Há quase um luto pela pessoa que éramos.
Você tem dois filhos, trabalhou em um novo livro durante uma pandemia. Escrever exige concentração, e essa é uma das maiores reclamações das mães durante a quarentena. Como você consegue fazer tudo isso?
Pois é, acho que não estou me saindo muito bem... É muito difícil, tenho um filho de 5 anos que está tendo aulas remotamente, então precisa de ajuda o tempo todo. Mas eu não consigo estar com ele a todo momento. Meu marido trabalha em casa também, então temos um equilíbrio em relação aos cuidados com as crianças. Mas o fardo ainda recai mais sobre mim. Mudei um pouco minha rotina. Eu tento acordar mais cedo do que eles, por exemplo. Mas acho que, nesse período, as mulheres darão alguns passos para trás, isso é um pouco assustador.
Pretende abordar algum outro tabu sobre maternidade no segundo livro?
Quero muito explorar outras camadas sobre ser uma mulher no final dos seus 30 anos e começo dos 40 que, de repente, se vê em um casamento, com filhos, com uma boa situação social e econômica, mas começa a sentir que isso não é o bastante. Como mudar? É quando se sente que é quase tarde para escolher uma mudança. O novo livro vai falar disso e também de amizade feminina. Quero mostrar que uma amiga pode ser tão próxima quanto um companheiro, um marido, e como isso é importante para nós.
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