Como Biden impacta na agenda antiaborto defendida pelo governo Bolsonaro
No oitavo dia de seu mandato como presidente dos EUA, Joe Biden revogou, na quinta-feira (28), uma regra que impede que ONGs estrangeiras que oferecem serviços de aborto ou aconselhamento sobre o tema recebam financiamento dos EUA e restaurou o financiamento federal, cortado anteriormente por Trump, para programas domésticos de planejamento familiar ligados a abortos, como o Planned Parenthood.
As duas medidas faziam parte das promessas de campanha do democrata. Do Salão Oval, Biden falou que a ação "desfaz o dano que Trump produziu" em relação ao acesso da saúde da mulher.
A medida sobre o financiamento das ONGs, antecipada pelo colunista do UOL Jamil Chade, representa uma forma de o governo Biden abandonar o projeto de Trump por uma agenda internacional antiaborto, a que o Brasil se mantinha aliado até agora.
Os dois países formavam uma aliança conservadora sobre direitos sexuais reprodutivos e da saúde da mulher, ao lado de nações como Egito, Hungria, Indonésia e Uganda. Segundo o jornal CBS News, a expectativa antes do movimento de Biden era que ele inclusive rejeitasse ou removesse o endosso à essa aliança, o que não aconteceu oficialmente.
Em outubro do ano passado, o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, e a ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, representaram o Brasil no chamado Consenso de Genebra, um acordo assinado por 31 países, como os citados, que se comprometiam em defender a família e rejeitar o aborto. Na prática, as nações decidiram vetar o uso de termos ligados à saúde reprodutiva e aos direitos sexuais em programas e resoluções internacionais.
Para a professora de Relações Internacionais da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e pesquisadora do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para Estudos sobre os Estados Unidos, Carolina Pedroso, o anúncio de Biden que enterra as políticas de Trump sobre o assunto é um duro golpe para o governo Bolsonaro, que deverá abrandar o discurso sobre a pauta antiaborto, se dedicando mais a questões internas.
Pauta anti-aborto no governo Biden e os efeitos no Brasil
Biden revogou a "Política sobre a Cidade do México", que proíbe que ONGs estrangeiras que recebem fundos do país forneçam serviços ou informações de aborto, ou atuem em defesa do procedimento. A regra também é conhecida como Lei da Mordaça Global e foi adotada por Trump, e por outros presidentes republicanos, desde 1984. Bill Clinton e Barack Obama a revogaram enquanto estavam no poder.
Nos primeiros dias de Biden, o conselheiro médico da Casa Branca, Anthony Fauci, afirmou que as revogações fariam parte do "compromisso mais amplo de proteger a saúde das mulheres e promover a igualdade de gênero em casa e em todo o mundo". "Será nossa política apoiar a saúde sexual e reprodutiva de mulheres", disse.
Para Carolina, o anúncio de Biden está alinhado a uma resposta aos eleitores que garantiram sua vitória nas urnas americanas. "Ele está aplicando o que já tinha eco na sociedade norte-americana. Ele foi eleito em um contexto de movimento Black Lives Matter, de revolta com Trump. Mas, é claro, quando ele faz isso tem reflexo no mundo inteiro."
A professora não vê, no entanto, espaço político para o presidente democrata defender a descriminalização do aborto. Considera que Biden está deslocando a pauta do ponto de vista ideológico da direita para o centro. "Ele está retomando a normalidade da diplomacia americana, que é historicamente mais moderada. Mas não vejo correndo o risco de ver os EUA defendendo o aborto, porque o país está dividido e pode sofrer rupturas internas."
Ainda que interna, a mudança nas políticas norte-americanas ultrapassa as fronteiras geográficas e deve causar forte repercussão tanto nas esferas governamentais e na sociedade civil, inclusive, no Brasil, que apoiava e seguia a postura conservadora de Trump.
Sem o aliado republicano, diz a professora, o governo brasileiro perde capital político e fica "encurralado" quanto às ações na política externa, que, em sua opinião, já têm exposto o país a avaliações negativas da opinião pública internacional quando o tema é controle e cuidados com a pandemia de coronavírus.
Quando há uma reversão dessa aliança conservadora em nível global, que era uma das pontas mais fortes para a ala ideológica do governo Bolsonaro, é um golpe muito duro. Porque o capital político que tinham era o fato de ter Trump do lado, como figura de referência
A ONG Conectas, que atua na garantia de direitos humanos, também considera que o Brasil sobrará no Consenso de Genebra, com países de "baixo peso diplomático e que são péssimos modelos no tema". "A diplomacia brasileira tem se dedicado a corroer consensos internacionais, sobretudo na agenda dos direitos das mulheres. Com as mudanças anunciadas pelo governo Biden, o Itamaraty perde o aliado de peso nesta pauta e fica junto de países como Uganda, Hungria, Polônia e Iraque", afirmou o assessor de Advocacy Internacional da entidade, Gustavo Huppes.
Carolina Pedroso explica que são esperadas duas atitudes do governo brasileiro com Biden ocupando a Casa Branca e trazendo novas perspectivas para a questão dos direitos reprodutivos. "O primeiro cenário seria de negação, com a diplomacia brasileira seguindo a narrativa de fraude eleitoral, de que a vitória de Biden não foi legítima, mas esse não me parece muito factível", aponta.
"O outro é o Brasil abrandar o discurso sobre a pauta, deixando-a em segundo plano, porque a gente tem outras coisas para resolver internamente. Os principais problemas do governo Bolsonaro, além da pandemia, são esses escândalos que saem todo dia, a pauta do impeachment se tornando cada vez mais amplificada na sociedade civil e no Congresso, dos gastos do governo federal. Me parece que esse é um cenário mais plausível."
Aprovação na Argentina dá fôlego ao Brasil
Carolina considera que a legalização do aborto até a 14ª semana de gestação aprovada na Argentina no final de 2020 veio em um contexto "de revés" sofrido por grupos conservadores que apoiam ou eram apoiados por Trump. Por outro lado, avalia que a conquista pode dar fôlego a movimentos na América Latina que lutam pelo mesmo direito às mulheres, "O movimento argentino foi muito significativo, porque lá o Estado não é laico, e a pauta que existia há anos foi aprovada no Congresso. Isso foi uma vitória muito grande", analisa.
"Temas ligados à defesa de direitos humanos, como o aborto, despertam paixões no mundo inteiro. E o do aborto tem sido usado como mote de discurso no retorno de grupos conservadores ao poder, que tratam a questão pelo viés ideológico, desconsiderando que é uma questão de saúde pública e de direito da mulher."
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