Lu Xavier: "Defendo o corpo livre, mas não estou 100% satisfeita com o meu"
Luana Xavier é atriz e apresentadora do "Viagem a Qualquer Custo", no GNT, mas prefere se referir a si mesma como "uma mulher do teatro". Desde criança, sabia que herdaria a profissão da avó, a atriz Chica Xavier, que morreu no ano passado, aos 88 anos, com 55 novelas e filmes no currículo.
A Universa, a atriz de 33 anos celebra o legado da avó nos palcos, dentro de casa e no terreiro — a família é praticante de Umbanda. Mas lembra, também, do racismo em testes para a televisão, de momentos de dor em que foi salva pelo teatro, e da busca pela autoestima sendo uma mulher negra e gorda.
UNIVERSA: No ano passado, você escreveu no Twitter que o teatro salva vidas. Como salvou a sua?
LUANA XAVIER: Você começou a falar isso, essa frase, e meus olhos já encheram de água. Eu comecei muito cedo, aos 10 anos, e sou uma mulher do teatro. Eu estava em cima do palco quando minha prima de 25 anos, morreu, em 2015. Ela era policial militar, levou um tiro em serviço, passou um mês internada, e no dia em que ela faleceu eu estava fazendo uma comédia, em Campinas (SP). A minha personagem era a mais cômica da história, e eu ficava me perguntando: "Como vou subir ao palco e fazer as pessoas rirem, se por dentro eu só quero chorar?".
Aprendi com a minha avó que o teatro exige essa entrega. Ela preferiu fazer TV porque dizia que quem faz teatro não chora os mortos. Afinal, é feito ao vivo. Se você tem qualquer circunstância emergencial, não importa, tem que subir no palco. De toda a temporada, aquele foi o dia em que eu mais me diverti em cena. Por alguns minutos, consegui respirar, esquecer a passagem da minha prima. O mesmo aconteceu anos depois, quando o pai da minha melhor amiga de infância morreu, de repente, e eu me apresentei sob efeito de remédio tarja preta.
O teatro é capaz de tirar a gente do fundo do poço É como se pegasse uma seringa e injetasse ânimo na nossa veia. No final do espetáculo, agradeci por ter passado por tudo aquilo em cima do palco, e não fora dele.
Mesmo ouvindo essa frase da sua avó — "Quem faz teatro não chora os mortos" — sua carreira acabou seguindo pelo caminho dos palcos mais do que pelo caminho da TV. Por que?
Quando eu era criança, brincava fingindo um discurso do Oscar, treinando autógrafo. Eu tinha certeza que queria ser atriz. Mas eu repensava o teatro justamente por conta dessa frase. Minha avó dizia que enveredou pela TV porque isso permitia que ela tivesse tempo de dedicação à família e à religião — nós somos de umbanda. Ela achava que o teatro atrapalhava nesse sentido. Mas, por mais que eu tenha refletido, não tive como escapar do teatro. Eu tinha muita vontade de estudar no Tablado [escola de teatro no Rio de Janeiro fundada pela dramaturga Maria Clara Machado, há 70 anos]. Quando entrei, me via contando os dias da semana para ir para lá de novo. Percebi que, embora minha avó fosse minha maior inspiração, eu seguiria um caminho diferente do dela.
Na TV e cinema, se não tiver escrito pelo autor e aprovado pela direção que aquele papel deve ser feito por uma atriz negra, eu não sou chamada. No teatro, podemos fazer qualquer papel. E essa possibilidade fez com que eu me aproximasse mais.
Sua avó falava de racismo em casa?
Embora minha avó tinha feito papéis que colocavam a mulher negra sempre num lugar de subserviência, como empregadas, escravas, pessoas em situação financeira desfavorável, esses personagens acabaram se tornando populares, porque a população brasileira se enxerga mais nesses papéis do que na dita alta sociedade. Mas que ela não conseguiu representar todos os papéis que quis na vida por conta da cor da pele, eu não tenho dúvidas. Uma coisa que certamente atrapalhou a vida dela, que a impediu de alcançar determinados lugares, foi a publicidade. A gente está começando agora a ver pessoas pretas na publicidade.
Na vida toda, minha avó fez no máximo três comerciais. Ela dizia: "Será que minha cara não vende nem material de limpeza?". Quando eu fiz meu primeiro comercial importante [de uma marca de sapatos, em 2019], chorei muito, porque era como se eu estivesse vivendo aquilo que minha avó não teve a oportunidade de viver.
Ainda há poucas representações de mulheres negras e gordas na TV. Estamos avançando?
A passos lentos, mas estamos avançando sim. Eu tenho a sensação que, no Brasil, a gente conquista de um lado e perde do outro, mas nunca pode ter tudo. Um programa como o BBB, em que todas as edições tiveram pessoas pretas para cumprir cotas, agora tem um número significativo. No entanto, não tem nenhuma pessoa gorda. Acho muito importante a gente registrar e comemorar os avanços, mas não dá para fechar os olhos e achar que está tudo bem assim.
As pessoas têm uma visão sobre obesidade que é muito equivocada, pensam que pessoas gordas se alimentam mal, são sedentárias e estão acabando com a própria saúde, mas não existe uma ligação objetiva entre esses fatores. Reitero: certamente estamos avançando, mas meio devagarzinho.
Você levanta a bandeira do corpo livre e fala muito sobre autoestima. Isso nasceu e cresceu com você ou teve uma virada de chave?
Teve uma virada de chave. Na adolescência, eu era magra e alta, mas em algum momento eu tive que tomar anticoncepcional e comecei a engordar. Depois deixou de ser o remédio, virou minha vida — comer muito, fazer pouco exercício. Eu não tinha coragem de usar nem o braço de fora. Quando eu ia fazer teste para peça, novela, eu me cobria inteira, não queria mostrar o corpo. E sempre mentia o peso.
Nos testes, antes de começar, você para na frente da câmera mostrando uma claquete que tem seu nome, altura e peso. Isso é horroroso. O peso aparece ali antes das falas para o papel. E eu, por vergonha, colocava 20 quilos a menos.
Minha relação com o peso só mudou quando eu fui convidada para um ensaio de fotos com outras 11 mulheres negras, mas nenhuma marca quis vestir a gente. O produtor então pediu que fôssemos todas de lingerie em tons terrosos, mas não imaginei que íamos fotografar sem roupa. Chegando lá, comecei a inventar desculpas, porque eu não queria aparecer de lingerie com aquele tanto de estria, celulite, pneu. No final, decidi fazer, mas não tive coragem de me olhar no espelho durante o ensaio. Era uma sala de ginástica, tinha espelhos enormes, mas eu desviava para não olhar. Só fui me ver quando as fotos ficaram prontas, e achei lindo. Pensei: "Poxa, até que esse corpo não é difícil de encarar". Depois disso, veio o ensaio nua [para o PELE Project].
Por mais que eu levante essa bandeira do corpo livre, não significa que todos os dias eu olhe para o meu corpo e ache a coisa mais linda do mundo. Eu cheguei à conclusão que não odeio meu corpo, mas não estou plenamente satisfeita. A gente tem esses momentos de "por que esse peito não é um pouco menor", por exemplo.
Recentemente, você revelou que está tendo problemas de saúde por conta do peso. Como foi encarar isso? Por que decidiu falar abertamente sobre o tema?
Eu me senti na obrigação de falar sobre a necessidade de mudar minha alimentação, fazer exercícios regularmente, tomar medicamentos. Desde que eu comecei a usar redes sociais, sempre falei meu peso, diferente do que eu fazia lá atrás, nos testes para a televisão. Achei que era justo mostrar esse outro lado da história. A mesma Luana que não tem problema nenhum em mostrar as estrias, a celulite, também não tem problema em falar que vai ter que mudar o jeito de viver por uma questão urgente de saúde. Eu tenho histórico de diabetes e hipertensão na família, e a obesidade é um agravante para essas questões.
Vou continuar dizendo que está tudo bem seguir com seu corpo se isso não está te causando nenhum bloqueio, nenhum problema. Recebi muitas mensagens encorajadoras, mas também surgiu muita gente indicando milagres, me mandando seguir coach não sei das quantas e falando dos benefícios da bariátrica — não acho correto que me tragam uma cirurgia como solução, sem saber qual é a minha conversa com a minha médica.
Além de autoestima e questões raciais, você também aborda a intolerância religiosa. Como as religiões de matriz africana são vistas hoje?
Eu posso até não falar sobre negritude, mas não deixarei de ser uma mulher negra, isso está visível. Se eu não falar da minha religião [a Umbanda], no entanto, ninguém vai saber que eu pratico. Mas as religiões de matriz africana são as mais atacadas, ao ponto de terreiros serem apedrejados na tentativa de impedir que a gente pratique a nossa fé. A religião não é só o que a gente acredita, mas o que a gente é — e ver uma parte sua ser apedrejada, queimada, como muitos terreiros no Brasil, dói muito. Por isso acho muito importante falar sobre isso, me posicionar.
As religiões de matriz africana são cultuadas principalmente por pessoas negras, mas temos pessoas brancas também, inclusive figuras públicas, que têm projeção. Nessa hora, a gente precisa que essas pessoas se mostrem aliadas, falem contra a intolerância religiosa. Não adianta chegar no terreiro pedindo um banho de folhas porque está com a vida atravancada, mas não se pronunciar quando acontece um crime contra um terreiro.
Chica Xavier é uma referência na dramaturgia brasileira, mas quais ensinamentos ela te deixou como avó? De que formas ela te inspira hoje?
A nossa família criou um slogan para minha avó, que sempre se renovava a cada aniversário. Ela fez a passagem aos 88 anos, então dizíamos: "Chica Xavier, 88 anos de amor e fé", porque sempre colocou amor e fé em qualquer coisa que fizesse. A coisa que eu mais admirava na minha avó era a capacidade de mostrar afeto, carinho, por quem ela não conhecia. Uma dia, ajudando ela a arrumar umas gavetas, achei uma foto 3x4 com um nome e uma data de nascimento. Era de uma senhora que ela conheceu na feira, estava passando por problemas e pediu que rezasse por ela. Minha avó dizia que uma das formas mais bonitas de demonstrar amor é rezando por alguém.
Então o maior legado dela é esse: de amor e fé, de distribuir essas duas coisas independente de raça, credo, orientação sexual. Eu acredito que a história dela não terminou aqui na terra, ela tem outra missão no Orum, termo que a gente usa para correlacionar o céu. Desde que ela se foi, a gente mudou a frase para "Chica Xavier, um infinito de amor e fé".
Como você encarou a morte dela?
Desde que eu comecei a fazer terapia, no começo de 2019, falei: "Preciso me preparar para a passagem da minha avó. Está mais perto do que longe". Ela era diabética, hipertensa, e eu já tinha perdido a minha outra avó. Sentia que essa vela estava prestes a se apagar. Eu achava que artifícios como a psicologia e a fé poderiam me preparar para esse momento, mas na hora percebi que a gente nunca está preparada para perder quem a gente ama.
Consegui me preparar para ser mais ágil em relação aos trâmites burocráticos — quando ela foi internada e os médicos disseram que ela não voltaria mais para casa, fui atrás de acionar a Globo, acionar o auxílio funerário, essas coisas. No velório, consegui conduzir a cerimônia, puxar os cânticos, ler o texto que escrevi em homenagem a ela. Tudo entre os intervalos de muito choro, mas consegui, porque achava que ela merecia.
Além de Chica Xavier, quem são as mulheres negras que mais te inspiram no Brasil?
A Isabel Fillardis, para mim, é uma das grandes referências. Chega uma certa idade em que param de dar trabalho para as atrizes, porque não são mais novinhas e gostosas para fazer par romântico, nem são avós, então ficam no limpo. A Isabel chegou neste momento, mas aos 44 está se reinventando no mundo da música. Além de cantora, ela agora compõe, usando toda a potência que sempre teve. Outra grande inspiração é Cacau Protásio. Sou completamente apaixonada por ela. Faz TV, um filme atrás do outro, e agora é empresária, tem uma marca de roupas plus size. E a Tia Má também, preciso falar dela, que é minha referência porque tem a destreza de levantar as bandeiras que levanta ao mesmo tempo em que é uma humorista de mão cheia.
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