Angela Davis recomendou: quem é Lélia Gonzalez, ícone do feminismo no país
Em 2019, a filósofa e ativista negra Angela Davis veio ao Brasil para uma visita bastante aguardada. Em um dos eventos, sua fala deixou parte dos ouvintes com uma pulga atrás da orelha: ela disse que nós, brasileiros, deveríamos ler mais a pensadora feminista Lélia Gonzalez, uma das intelectuais mais importantes no debate sobre a condição da mulher negra no Brasil. Lélia faria hoje, se estivesse viva, 86 anos.
Nascida em Belo Horizonte, Lélia deixou um legado de discussões sobre raça e gênero. Acumulou formações, em antropologia, história e filosofia, dialogou com a psicanálise e ainda assumiu pautas como a militância negra, o feminismo, o marxismo, o ativismo pela democracia e o anti-imperialismo. Também participou da política institucional, se candidatando a cargos públicos no Rio de Janeiro, e se articulou com coletivos e grupos progressistas dos anos 1970 no Brasil, sem deixar de se interessar pelas transformações políticas e sociais no mundo à época.
Mesmo para parte do movimento feminista, ela pode ser uma autora desconhecida ou com legado difícil de achar. No entanto, é inegável a influência do pensamento, do senso de análise e até mesmo da linguagem em pensadoras negras contemporâneas, como a arquiteta e escritora Joice Berth, e a escritora, mestra e doutoranda em gênero Carla Akotirene.
No final de 2020, a editora Zahar lançou um livro que reúne textos de Lélia produzidos entre 1979 e 1994, ano da morte da intelectual, vítima de um infarto. A pesquisadora Flavia Rios, do núcleo de Raça, Gênero e Justiça Racial do Cebrap e professora da Universidade Federal Fluminense, organizou a produção literária ao lado da doutora em sociologia e professora da USP, Marcia Lima. Para Flavia, Lélia é sinônimo de "ecletismo intelectual".
"Ela foi uma grande ativista, uma personagem relevante para a democracia brasileira, esteve na base dos partidos de oposição, lutava contra a ditadura e, depois, se candidatou a cargos públicos, lutou pelos negros. Ela transitava por muitos ambientes", diz Flavia.
A intenção é de que o novo livro seja um impulso para que mais pessoas tenham contato com o pensamento de Lélia, que conseguia simplificar em sua fala os temas complexos da sociedade. Aos poucos, vamos assimilando o puxão de orelha de Angela Davis e absorvendo as ideias feministas de Lélia.
Eu sinto que estou sendo escolhida para representar o feminismo negro. Mas por que aqui no Brasil vocês precisam buscar essa referência nos Estados Unidos? Acho que aprendi mais com Lélia Gonzalez do que vocês aprenderão comigo. Angela Davis
O que a fez ícone para feministas e antirracistas
Lélia Gonzalez é uma referência para pelo menos duas vertentes de movimentos sociais: o feminismo, que inspira ações de igualdade de gênero na sociedade, e o antirracismo, uma luta histórica de pessoas negras e que, a cada dia, mobiliza mais pessoas brancas também.
Para Joice Berth, feminista negra, há um lapso grande entre o alcance midiático da militante e o de Angela Davis, por exemplo. "O feminismo negro tem trabalhado sobre Lélia. Em todos os espaços de que eu participei, não se deixa de falar dela, porque, como Jurema Werneck diz, nossos passos vêm de longe", analisa.
"Acontece que pessoas fora do círculo de militância nem sempre buscam conhecê-la, que faz parte de uma geração de mulheres, brancas e negras, como Amelinha Teles, Nilza Iraci, que fizeram muito pelo feminismo, mas ainda estão na invisibilidade", diz Joice. Para ela, Lélia toca em feridas que o Brasil, ainda hoje, não quer mexer. "Para nós, é uma produção muito mais cortante que a de Angela Davis."
Produção de Lélia é enxuta, mas influente
Mas, é difícil mesmo achar o que Lélia escreveu sobre racismo, sexismo, mulher negra e as identidades raciais do país? Em parte, sim. Enquanto Angela Davis tem vários livros escritos e traduzidos no Brasil, Lélia tem uma "produção mais enxuta, que exigiria do mercado editorial uma postura que não se tem, de pesquisa e resgate", avalia Joice. Lacuna suprida parcialmente pelo livro da Zahar.
Joice analisa, no entanto, que essa invisibilidade é uma marca para o intelectual negro brasileiro fruto do próprio racismo. "Ainda encontramos dificuldade para colocarmos nosso pensamento na sociedade, nos fazermos respeitar."
Além da procura por conta própria de textos publicados na imprensa dos anos 70 e 80, discursos em encontros dos movimentos feministas e negros e sua produção acadêmica, outro referencial para quem quer se aprofundar nos temas abordados por ela é o livro "Lélia Gonzalez", de 2010, que Flavia Rios escreveu com o antropólogo Alex Ratts, pela Selo Negro Edições.
"Qualquer livraria que você vá, no entanto, há um livro de Angela Davis. A difusão do pensamento é maior. Isso porque elas tinham se conhecido nos anos 80 e Lélia tinha ideias que se assemelhavam as dela. Ou seja, uma intelectual que tinha o mesmo calibre, mas totalmente apagada", comenta Flavia.
A escritora Carla Akotirene foi se aproximando aos poucos do pensamento da militante, que antecipou o conceito de interseccionalidade em seus escritos. "Em 2004, passei por um curso de formação antirracista com intelectuais negros, como Luiza Bairros. Quando fui fazer o mestrado e o doutorado na Universidade Federal da Bahia, entre 2010 e 2012, é que tive acesso ao pensamento dela", diz. "Mas tendiam a valorizar as intelectuais europeias e dos Estados Unidos. Mas, na nossa cultura ioruba, Lélia era uma mulher de Oxum, que se comporta como água e se infiltra nos espaços, eu também me comportei como Lélia."
O que Lélia deixa como legado intelectual
Para a professora Marcia Lima, entra na conta de Lélia o esforço para construir uma agenda feminista brasileira nos anos 70. Isso se dá principalmente pelo fato de a intelectual ter atuado tanto no movimento negro — ela foi uma das fundadoras do Movimento Negro Unificado, o MNU, em 1978 — como em organizações de mulheres.
"Lélia colocou questões desafiadoras para a construção do feminismo no Brasil, particularmente em virtude da sua produção e reflexão sobre o papel e o lugar da mulher negra na sociedade brasileira. O seu texto 'Racismo e sexismo na cultura brasileira' (1984) é texto essencial, pois trata justamente da construção desses processos estruturais na nossa sociedade e como eles configuraram o papel da mulher negra nela", analisa.
O texto à que Marcia se refere talvez seja a sua publicação mais famosa, justamente por ter usado uma linguagem irônica para criticar o sistema de dominação em que negros são discriminados e questionar o "lugar de lata de lixo" em que a sociedade racista insiste em colocá-los.
Na introdução do texto, em que explica que há uma tentativa de "domesticar-se" o negro ou olhar para a população negra como infantil e sem capacidade de ter fala própria, Lélia diz: "Neste trabalho assumimos nossa própria fala. Ou seja, o lixo vai falar, e numa boa".
Para as autoras, a militante também inaugurou uma forma de pensar feminista ao expor e criticar a representação estereotipada de mulheres negras, que as reduzem, basicamente, aos papéis de "mãe preta", "trabalhadora doméstica" e "mulata tipo exportação".
Anticapitalista, anti-imperialista, antirracista
Influenciada não só por autores europeus ou americanos, mas também por pensadores da África e da América Latina, Lélia também deixou um legado de conhecimento sobre identidades brasileiras. Faz parte dessa proposta seu conceito de "amefricanidade" para explicar nosso povo, sem desconsiderar a contribuição dos negros da diáspora e dos povos originários das Américas, como os indígenas.
"A marca desse conceito é que ele transcende os limites geográficos e passa a incorporar todo um processo histórico de intensa dinâmica cultural (adaptação, resistência, reinterpretação e criação de novas formas), que é afrocentrada", afirma Marcia.
O pensamento e a ação política de Lélia têm contribuições imensuráveis não só para a construção dessa agenda no final dos anos 1970, mas para as gerações subsequentes do feminismo negro brasileiro e latino-americano.Marcia Lima
Isso mostra que Lélia não era só uma feminista negra. Era anticapitalista, anti-imperialista, antirracista e se importava em entender e analisar as múltiplas opressões reproduzidas na sociedade brasileira ao longo dos séculos.
Revisitá-la, ou conhecê-la, aponta Flavia Rios, é um caminho para que debates mais atuais sobre racismo, machismo e outras formas de opressão que atingem homens e mulheres negros sejam enriquecidos por um pensamento que inspira a ação, inclusive pela trajetória pessoal de Lélia.
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