Discórdia, treta e lacre: como questão racial afeta Lumena, Conká e Lucas
Em pouco mais de uma semana no ar, o BBB 21 já é uma edição marcada por colocar no centro das conversas temas como saúde mental, questões raciais, "cancelamento" e discordância entre o que os participantes falam e como agem em diferentes momentos. Do lado de fora, os efeitos práticos também já são vistos: a rapper Karol Conká, por exemplo, teve a apresentação suspensa do festival Rec-Beat, sob o argumento de sua conduta dentro do reality.
Nas redes sociais, a postura de Conká, acusada de torturar psicologicamente o ator Lucas Penteado, também gerou muita repercussão nos últimos dias. A rapper chegou a expulsar o ator da mesa para que ela sentasse para comer e, na dinâmica do "Jogo da Discórdia", na segunda-feira, apontou o brother como um "cancelador". Anônimos e famosos, como o ator Lázaro Ramos, mandaram recados de apoio a Lucas e à família dele pelas redes sociais.
Na tarde desta terça-feira, ela e Lucas conversaram e ela disse que não o atacará mais. "Eu não sou uma pessoa raivosa, eu estava raivosa", disse a sister ao ator. A conversa aconteceu um dia depois de o apresentador Tiago Leifert ter colocado em pauta quem são as pessoas que "cancelavam" as outras na casa, no "Jogo da Discórdia".
"A mudança da Karol é o processo de análise que a gente faz o tempo todo. Quando o Tiago Leifert falou do 'cancelador', deu para ver na cara dela como ela se viu na fala dele", analisa a psicanalista Jaqueline Conceição, que ministra o curso Psicanálise e Racismo, na Casa do Saber, e é doutoranda em antropologia social pela Universidade Federal de Santa Catarina.
Outra participante que esteve intensamente envolvida na situação travada entre Conká e Lucas foi a mestra em psicologia e DJ Lumena Aleluia. Por ser vista como conivente com a atitude da rapper, a sister chegou a perder seguidores no Instagram - foram dezenas de milhares. A crise tomou tamanha proporção que os administradores da página de Lumena publicaram comunicado dizendo que não compactuam "com os movimentos que estão acontecendo na casa".
"Não estamos abandonando o barco, pelo contrário, estamos nos posicionando porque acreditamos que assim como é possível se perder em um jogo e fazer leituras equivocadas, é possível também se reencontrar", diz um trecho da post no Instagram.
Para a psicanalista, há muitas ferramentas para analisar o cenário que interliga a trajetória dos três. Uma delas é a racialidade, um conceito que explica como se dá a construção de si e do outro em relação à raça. Mas não dá para tirar da conta, diz a especialista, a personalidade de cada participante e o fato de que o BBB é um programa em que "a discórdia faz parte do jogo".
Mas entre discórdias e tretas, o que está por trás de tanta mobilização do público em relação à postura demonstrada por esses participantes?
Conká, Lucas e Lumena: a dinâmica do conflito
Quem acompanha a casa mais vigiada do Brasil viu pipocar o primeiro conflito a dividir a casa em menos de três dias de reality. Lumena Aleluia protagonizou uma conversa com Caio e os outros brothers sobre o fato de os homens terem se maquiado e feito um desfile. Ela disse que a brincadeira poderia ser ofensiva para pessoas trans. Na internet, a opinião foi endossada por mulheres trans, mas não foi uma unanimidade.
A criadora de conteúdo Bianca Fernandez, que é usuária do Twitter e comenta o reality na rede social, contou para Universa que "abraçou" Lumena de primeira. "O discurso forte dela foi o principal motivo para geral abraçá-la de primeira, fora o fator da cor. Nosso inconsciente anseia por representatividade, independentemente da situação", explica. "Lumena se mostrou uma pessoa tão lúcida ao falar do lance da maquiagem e da performance do Caio, sabe? Não foi de maneira nenhuma desnecessária, ela soube falar".
Apesar disso, a discussão ultrapassou os muros do BBB. Não faltaram tuítes dizendo que "ela fez uma tempestade em copo-d'água" ou "militou errado", com opiniões de que ela teria reagido de forma desnecessariamente incisiva.
Para a consultora júnior da empresa B4People, Camila Santos, que atua com cultura inclusiva em empresas, neste caso, associou-se a Lumena o estereótipo da "mulher negra raivosa".
Lumena se posicionou educadamente e numa boa. Quis alertar os participantes que não têm contato com a realidade de pessoas trans e travestis sobre a importância daquilo. Só foi vista como agressiva após Juliette e Sarah, mulheres brancas, validarem essa opinião de que ela estava brava. Aí, qualquer opinião que Lumena expresse cai nesse estereótipo Camila Santos
Lumena viu apoio inflar e murchar em poucas horas
Após a repercussão do caso de transfobia, Lumena passou a ter uma posição diferente no jogo, o que fez com que o público achasse que ela estava sendo conivente com as críticas de Karol Conká sobre Lucas.
A atitude foi vista como decepcionante para alguns, como Bianca. No post oficial da BBB no Instagram, no entanto, também há comentários de apoio e torcida para que ela se reencontre dentro do jogo. "Ela compactuou, tendo o discurso que tem. OK, todos nós temos momentos de erros, mas foi bem incoerente. E também por não dar o benefício da dúvida e do perdão para o Lucas", diz a produtora de conteúdo.
Depois da cena em que Conká fala para o ator se levantar da mesa, vale dizer, Lumena conversou com ele no quarto. "Os próprios pretos da casa querem você no paredão. Olha que tiro no pé. Se conecte direito com a sua entidade", disse a psicóloga ao participante.
Na opinião da psicanalista Jaqueline Conceição, é possível observar a trajetória de Lumena até aqui trazendo a questão racial como pano de fundo. "Um dos lugares que a branquitude, que é um sistema de pensamento, nos empurra é para o de negra militante. Brincamos que seria o 'lugar de Martin Luther King', aquele que é intelectual, que fala bonito. Isso não quer dizer que esse lugar está no processo de identificação daquela pessoa", analisa.
Para Conceição, Lumena agiu assim na questão da maquiagem feita nos homens da casa, mas não sustentou o mesmo discurso na questão entre Lucas e Conká, se aliando "ao lado do lacre".
Para Bianca, a discórdia criada por esse episódio e os desdobramentos até agora, na edição com maior número de participantes negros, pode ser uma lição importante para mostrar que pessoas negras não são iguais; reduzi-las a uma mesma forma de pensar é mais um estereótipo.
"Somos seres singulares. A luta é uma, mas somos seres pensantes e de opinião própria. Além disso, o fator 'jogo' influencia nas opiniões dadas lá dentro", analisa.
Eu torço para que a Lumena pare para pensar realmente no que ela fez, porque ela se perdeu completamente no personagem Bianca Fernandez
Lucas x Karol Conká e a relação com o racismo
Jaqueline, que também é fundadora e diretora do Coletivo Di Jejê e consultora da ONU para questões de racialidade e gênero, pondera que a dinâmica das relações dentro do jogo, como a de Conká e Lucas, é a reprodução do que acontece em sociedade e pode atingir pessoas negras.
"O BBB está levando para o debate público o que as pessoas negras vivem no âmbito privado. Se tem algum ganho nisso, é que o debate sobre saúde mental, sobre racismo e sobre auto ódio vai se abrir", reflete.
A psicanalista comenta que a questão racial recai sobre Lucas na medida em que ele é visto como o homem negro não desejável, que não é querido por perto.
Homens negros que assistem BBB falam que o que ele viveu dentro da casa se repete aqui fora. "Por isso, os negros tentaram se afastar dele; o Nego Di diz que ficou chateado por terem tentado igualá-los", avalia. "E a rejeição do homem negro acontece na sociedade, quando ele passa pela escola e sofre racismo, quando tem uma abordagem policial".
Para ela, não é possível apontar qual é de fato a origem do que Conká sente em relação a Lucas, a ponto de pressioná-lo psicologicamente, ainda que detalhes sobre a personalidade autoritária da rapper estejam sendo revelados, como alguns produtores que trabalharam com ela no backstage falaram ao UOL.
"O que psicanalistas que estudam o racismo apontam é que uma das coisas que ele cria em pessoas negras é esse auto-ódio, que cria no inconsciente e depois, no consciente, a ideia de rejeição, e o desejo pelo mundo branco, aquilo que é reconhecido como lugar de pessoas brancas, como a fama, ser capa de revista."
Apesar de entender que o comportamento de Karol faz parte das dinâmicas raciais das relações, Jaqueline também considera que "não tem como passar pano" para a postura da rapper.
"O que a Karol sente por Lucas é ódio. Não dá para dizer que é uma reprodução do racismo, nem que ela está sendo racista com ele. Mas o fato é que nós crescemos ouvindo que o negro é menos e para gente conseguir viver nesse mundo, ou ficamos alienados, ou aprendemos a amar e desejar o mundo branco, nem que para isso tenha que violentar psicologicamente um homem negro, ou adotamos a postura de ruptura", comenta. "Karol é uma mulher adoecida pelo racismo."
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