"Rede social tem feito mal à população", diz médica da Fiocruz sobre vacina
"Desculpe. Ontem foi um dia infernal. Aliás, hoje está mais ou menos igual", justifica a médica pneumologista Margareth Dalcolmo, 62, ao adiar a entrevista agendada por telefone. Pioneira no atendimento de pacientes de covid-19 no Brasil, a pesquisadora da Fiocruz conta que está acostumada com a rotina pesada, mas agora tem novas demandas, como maior quantidade de casos da doença.
"O índice de transmissão está muito alto. Estou com mais doentes agora do que no meio do ano passado, e a gente tem muitas preocupações agora para conseguir vacinar o máximo de pessoas num mínimo de tempo."
Após contrair a doença logo no início da epidemia no país, ela foi a segunda brasileira vacinada contra o vírus com o imunizante desenvolvido pela AstraZeneca e a Universidade de Oxford, no fim de janeiro. "Não tem efeito colateral nenhum", conta. Ela também diz que fica perplexa com quem ainda desacredita da vacina, aponta a perda de pacientes como o momento mais crítico de sua jornada, e considera "indecente, antiética e inoportuna" a proposta de compra de imunizantes por empresas privadas para privilegiar funcionários.
A aplicação da vacina aconteceu após a capixaba de Colatina se emocionar, durante um evento no Rio, ao comentar o atraso na entrega de insumos para a produção do imunizante por parte de China e Índia. Na ocasião, disse que o fato era uma "absoluta incompetência diplomática do Brasil".
Leia a seguir os principais trechos da conversa.
UNIVERSA: A Fiocruz e o Butantan estão dependendo da chegada do IFA (Ingrediente Farmacêutico Ativo) para iniciar a produção nacional da vacina em larga escala. Qual a previsão para começar a produzir?
MARGARETH DALCOLMO: Em abril, estaremos produzindo IFA no Brasil. A Fiocruz tem o compromisso de entregar o primeiro lote, de 15 milhões de doses, num período de aproximadamente um mês, e depois continuar a produção. Nosso compromisso é entregar ao Ministério da Saúde 100 milhões de doses até o final do primeiro semestre.
Há um receio de o país não ter vacina suficiente para segunda dose dos que já estão sendo vacinados?
Não tenho temor quanto a isso. Vão chegar a tempo. O Brasil tem uma capacidade de produção muito grande, com dois órgãos públicos de grande potência, que são a Fiocruz e o Instituto Butantan. Existe um detalhe: a vacina do Butantan (CoronaVac, desenvolvida com o laboratório chinês Sinovac) realmente precisa ter assegurada a segunda dose, porque o tempo de intervalo entre elas é de três semanas. Já a de Oxford/AstraZenecas teremos tempo de receber para a segunda dose. Todos nós seremos revacinados em abril, e até lá já teremos a vacina fabricada no Brasil.
Como a senhora enxerga o descrédito na vacina por parte dos brasileiros?
Isso me causa um pouco de perplexidade. Porque os brasileiros são tradicionalmente confiantes em vacina, e aderentes às campanhas. O Brasil tem tradição tão positiva nesse aspecto, que acho que redes sociais e canais de desinformação têm feito mal à população. Tenho tentado mostrar e explicar o que é a eficácia, que é um conceito usado num estudo clínico. Na prática, o conceito que usamos é de efetividade, e efetividade é aquilo alcançado com a máxima cobertura, número de pessoas cobertas pela proteção conferida pela vacina, que é o que esperamos encontrar no Brasil dentro de alguns meses.
No último dia 20, um vídeo seu em que fala emocionada sobre o atraso na entrega de insumos para a produção da vacina viralizou. E agora acompanhamos no país vários casos de fura-fila da vacina, denúncia de descarte de imunizantes no Rio. É o momento mais crítico que a senhora vivenciou até aqui?
Não. Vivi momentos muito críticos, sobretudo de ter que lidar com a perda de pacientes. Esses são os mais críticos. Talvez nós, médicos, nunca tenhamos sido tão exigidos no sentido da compreensão holística, do que faz a angústia de um paciente diante do medo da doença e das consequências dela. Estamos sendo exigidos no sentido de ter a grandeza necessária para lidar com uma situação tão nova e ameaçadora.
Podemos esperar que até dezembro todos os brasileiros estejam vacinados, ao menos com a primeira dose?
Nossa expectativa é que consigamos, até o meio do ano, vacinar até metade da população brasileira. Acho perfeitamente possível sem nenhuma dificuldade fazer isso. E o Brasil sabe fazer.
Reportagem recente da Folha mostrou que o governo federal cortou 68,9% da cota de importação de equipamentos e insumos destinados à pesquisa científica. Como isso afeta os trabalhos na Fiocruz?
Não afeta somente a Fiocruz. É um corte absurdo que a comunidade científica e a civil não podem aceitar. É preciso entender que investimento em pesquisa não é gasto, é investimento, e tem retorno. Investimos em pesquisa para formação de cérebros que possam produzir para o Brasil. O país sofreu evasão de cérebros preciosos nos últimos anos, exatamente pela perda dos investimentos de algumas áreas que seriam muito estratégicas.
É preciso que aqueles que ficaram tenham condições de trabalhar e produzir, e a comunidade científica brasileira mostrou uma grande pujança durante a pandemia. Muita coisa foi feita, desde a produção de equipamentos como respiradores, até estudos de grande envergadura, com participação em ensaios multicêntricos internacionais. É um saldo que considero positivo para a opinião pública de que ficamos mais visíveis, mais presentes.
Como a senhora enxerga a discussão sobre a compra da vacina por instituições privadas?
São duas questões. Uma é o Brasil ter clínica privada de vacinação. Não tenho nada contra isso. Haverá um momento posterior em que isso poderá ocorrer, como hoje você pode ir a uma clínica privada e tomar vacina de gripe, de sarampo, do que você quiser. Outra coisa é, num momento pandêmico, se cogitar comprar vacina para fábricas, instituições privadas e privilegiar os funcionários. Isso considero indecente, antiético, inoportuno. Não tem nenhuma justificativa, num momento de pandemia, nada que não seja feito através do SUS e do Programa Nacional de Imunização (PNI). E mesmo que uma empresa comprasse um milhão de vacinas e desse metade para o PNI, não resolve o problema. Estaria privilegiando. E além disso, não adianta vacinar um operário ou um funcionário, porque ele chega em casa e tem família.
Desde o início da pandemia, grandes médicas e pesquisadoras como a senhora, a bióloga Natalia Pasternak, a infectologista Rosana Richtmann, vêm se destacando no combate à doença. É uma surpresa para a senhora ver esse cenário construído por mulheres?
Não. Para mim não é tão relevante essa questão de gênero, o que não quer dizer que o fato de ser mulher não tenha me exigido, muitas vezes, um comportamento talvez mais duro, para me impor num universo ainda masculino. Mas na medicina hoje, no Brasil, há mais mulheres. Não é fácil. Tive que fazer algumas especialidades, o que compromete a sua vida com a sua família. Mas a mulher é extraordinária, e tenho respeito pelas colegas médicas que também são mães. Eu não sou.
Mas aconteceu algo específico para que a senhora tivesse esse comportamento mais duro que comentou?
Não. Nunca sofri episódio de assédio que seja digno de registro. Foram coisas muito sutis ao longo da vida. Sempre tive muita firmeza nesse sentido. Nunca foi difícil, para mim, neutralizar uma ameaça velada, digamos assim, de assédio. Não posso absolutamente relatar nada que tenha sido digo de registro nesse sentido.
A senhora vem de uma família de juristas. O que a fez ser médica?
Meu pai e avô foram advogados, tenho tias promotoras de justiça. É uma família marcada, eu diria, pela área das ciências humanas nesse sentido. Sempre dizia que queria ser diplomata, e aos 17 anos mudei de ideia e comuniquei à família que queria ser médica, que achava que era algo mais parecido comigo. Sempre tive muito poder para ouvir e um raciocínio intuitivo desde muito pequena. Isso ajuda muito no exercício da medicina.
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