Filha de sacoleira, ela criou startup para ajudar mulheres da periferia
Nascida e criada em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense, Ludmila Hastenreiter, 32, tem viva a memória de quando ajudava a mãe, que era empregada doméstica e sacoleira, a separar e colocar preço em todo o estoque de roupas que havia comprado para revender. "Minha mãe não tinha direitos trabalhistas e precisava se virar para arrumar uma renda extra, a mesma realidade de muitas pessoas que vivem em contextos periféricos", diz ela, que há três anos fundou a Empoderamento Contábil, startup de contabilidade voltada a empreendedoras de baixa renda.
A ideia do negócio surgiu ao ver o esforço da mãe, Tânia Valéria, que hoje se tornou artesã, e do pai Luiz Alberto, serralheiro, mas também do trajeto diário que fazia entre a casa e o trabalho. "Durante 12 anos, eu saía todos os dias da periferia para estudar e trabalhar em instituições renomadas nas áreas nobres do Rio. Enquanto atravessava a cidade, via o abismo de diferença social e percebia as necessidades das empreendedoras para impulsionar seus micronegócios", conta.
Além das sacoleiras, como a mãe, ela encontrava no transporte público muitas ambulantes, manicures e diaristas, que, pensava, podiam receber treinamento de qualidade sobre contabilidade, em uma linguagem descomplicada e acessível. "A minha mãe é uma empreendedora de nascença, sempre prezou por economizar e pensar no nosso futuro. Isso me influenciou muito", diz.
Do mundo corporativo para empreendedorismo social
Ludmila foi a primeira pessoa da família a chegar em uma universidade e o gosto pela matemática fez com que ela decidisse estudar contabilidade. "Eu me lembro da minha mãe me ensinando a fazer contas na sala de casa e de uma maquininha registradora que ela me deu quando era criança".
Depois de terminar a faculdade, ela trabalhou em empresas e escritórios de contabilidade, até que se deu conta de que não estava no lugar certo.
"Se não tivesse passado pelas multinacionais onde eu trabalhei talvez não tivesse percebido a importância de voltar para as minhas raízes", diz. "No mundo corporativo, muitas vezes sugerem que você deva se encaixar aos moldes, perdendo a sua forma original. Ao longo de 12 anos, eu percebi que existem valores e princípios que para mim são inegociáveis. Foi aí que percebi que só me sentiria realizada atendendo a pessoas da periferia, com histórias de vida próximas às minhas", diz.
"Projeto foi para retribuir às mulheres da periferia como eu"
Em 2017, Ludmila criou a Empoderamento Contábil, inicialmente como um perfil nas redes sociais, que logo virou uma empresa de cursos e consultorias de baixo custo para micro e pequenas empreendedoras. Apesar de ser voltada a mulheres, também atende a outros públicos.
"Esse projeto transbordou do meu coração, era um desejo que eu já tinha há algum tempo de retribuir às minhas iguais da periferia, compartilhando um pouco do que aprendi sobre gestão financeira e contabilidade", afirma. "Eu sempre penso que, se a minha empresa existisse na década de 1990, talvez a minha mãe não precisasse passar por tantos perrengues na vida".
Nos primeiros seis meses, o negócio funcionava como um projeto paralelo de voluntariado, custeado pelo trabalho de Ludmila como contadora autônoma. Para chegar a mais pessoas, ela fazia parcerias com organizações da sociedade civil e dava palestras, muitas vezes gratuitas, sobre o tema sempre que era convidada, e dava dicas nas redes sociais.
Nesse primeiro momento, ela investiu comprando um bom notebook e imprimindo seus cartões de visita, além das horas de preparação e participação em eventos virtuais. O momento mais difícil da transição, afirma, foi ouvir as críticas quando decidiu sair do emprego para investir na empresa. "Minha família sempre me apoiou, mas muita gente me mandava vagas de emprego porque não entendia que era uma escolha, eu não estava desempregada."
Além disso, muitos até hoje confundem o negócio de impacto social, como o seu, e o trabalho das ONGs. "A gente almeja o lucro, mas essa não é a única forma de analisar o impacto que a atividade tem gerado", explica.
Quando a Empoderamento Contábil começou a engrenar, ela conseguiu uma bolsa para fazer um curso nos Estados Unidos, que garantia estadia e a isentava dos custos com a universidade, mas não cobria visto e passagens. "Tomei coragem e fiz uma vaquinha virtual", diz.
No retorno ao Brasil, ela decidiu que era hora da Empoderamento Contábil começar a se manter com o faturamento próprio. "Em novembro de 2019, participei de um processo de aceleração que me fortaleceu muito e me ajudou a estruturar o modelo de negócio para o meu público-alvo", diz.
Serviços contáveis a partir de R$ 97
Foi aí que ela passou a oferecer consultorias online para micro e pequenas empreendedoras a partir de R$ 97. Para tornar o negócio sustentável, estabeleceu uma cesta de serviços para cada faixa de preço e de acordo com o objetivo da cliente, calculou cada etapa do processo e avaliou qual seria o melhor custo-benefício.
Além disso, decidiu que os encontros teriam que ser online. "Perdi alguns clientes por não trabalhar em uma sala comercial, ter secretária e oferecer cafezinho, mas consegui manter um valor acessível."
Entre as clientes, mães solo e mulheres vítimas de violência
O cardápio da startup tem ainda cursos e palestras oferecidos presencialmente. Nos eventos ela já conheceu inúmeras mães solo, que viam no pequeno negócio uma chance de estar mais perto dos filhos e gerar renda, mulheres que precisavam de dinheiro extra e as que tinham sofrido situações de violência ou assédio nos antigos empregos e abriram mão da carteira assinada para ter saúde emocional.
Para chegar a cada uma delas, Ludmila reforçou as dicas que dava nas redes sociais. "Eu queria tirar essa visão que a população de baixa renda tem do contador, de alguém que quer só arrancar dinheiro, para um aliado para impulsionar o negócio", diz.
Reinvenção em meio à pandemia
Em 2020, veio a pandemia, novos desafios e uma chance da startup crescer. De repente, muitos negócios saíram do papel por conta do desemprego e outros tiveram que se reinventar durante o isolamento social. "Sinto que houve uma maior valorização das consultorias, do online e as pessoas voltaram um olhar mais atento ao negócio", diz.
Por outro lado, ela diz que perdeu um contato importante com empreendedoras que não estão na internet, porque os eventos presenciais deixaram de acontecer. A saída foi reformular o site da empresa, deixando-o mais acessível para o acesso via celular e para quem tem um limite baixo de dados.
O desafio agora, diz a contadora, é ampliar ainda mais os canais de comunicação com as empreendedoras, como o rádio e a TV, e relançar, no primeiro semestre deste ano, um treinamento online. O programa se chama "Vamos Juntas" e foi criado para mulheres que precisam ou querem empreender e não sabem como começar, tem dicas de planejamento financeiro e estratégico e ensina como montar um plano de negócios.
"Quando estava começando, nos momentos mais difíceis, eu me lembrava do tempo que dediquei a empresas que não eram minhas e pensava: por que não ser resiliente com um projeto que é meu, que eu acredito? A minha intuição me dizia que em algum momento esse esforço ia ser reconhecido". Até agora, foram mais de 30 clientes atendidas e 2.000 pessoas impactadas em 30 eventos realizados.
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