"Zap de macho": pesquisa revela conversas com piada misógina e foto íntima
Em uma de suas várias palestras pelo Brasil, em 2019, quando aglomerações ainda eram permitidas, a professora do departamento de Psicologia da UnB (Universidade de Brasília), Valeska Zanello, convocou homens para ajudarem-na em uma nova pesquisa: ela queria analisar as conversas dos grupos masculinos no Whatsapp, mas precisava de, em suas palavras, "espiões".
Um espectador a procurou ao final do evento oferecendo ajuda. Em outra palestra, o mesmo pedido foi feito, e mais um se dispôs a alimentar o banco de dados de Valeska com as piadas, fotos e conversas que apareciam no grupo que tinha com os amigos.
No total, a psicóloga conseguiu seis voluntários, que forneceram material durante quatro meses. A pesquisa deu origem ao artigo "Masculinidades, Cumplicidade e Misoginia na Casa dos Homens: Um estudo sobre os grupos de WhatsApp masculinos no Brasil", publicado no final de janeiro. Ao todo, reuniu 634 posts e os dividiu em categorias com diferentes análises. Ela conta o que descobriu sobre o universo masculino nessa entrevista a Universa.
"Grupos são sintoma da misoginia assim como os 180 estupros por dia"
Pode parecer uma brincadeira entre adolescentes mandar uma imagem em um grupo em que se vê duas partes inferiores de um corpo feminino "costuradas" uma à outra, com os dizeres "a mulher perfeita", por ter duas vulvas, dois ânus e não ter cabeça.
Uma análise a partir de uma perspectiva feminina mostra, porém, que não há graça, mas violência. Esse foi um dos posts que Valeska recebeu e que ilustra a explicação sobre a primeira, e mais recorrente, categoria: a objetificação das mulheres é uma exigência para provar-se homem, como ela explica.
Quem chancela a masculinidade dos homens são outros homens. E, para isso, é fundamental performar a misoginia
Objetificar, segundo a pesquisadora, não se limita a desejar o corpo de alguém. Não é só achar uma mulher bonita e gostosa, mas se limitar a isso. Nas relações entre gêneros, é um ato de domínio, de mostrar poder sobre outro gênero ao resumi-lo a corpos consumíveis sexualmente.
A análise casa com o fato de diversas mensagens trocadas nos grupos serem exibidas com fotos de vulvas e ânus — a autora usa os termos "buceta" e "cu", como são os usados entre eles.
"E não vale só para relações sexuais ou afetivas em si. A objetificação é uma emoção que os homens aprendem a ter para estar no mundo. Por isso, ao falar de política, de meio ambiente, também é por meio disso", diz. Em uma das imagens que o artigo traz, uma mulher branca, bronzeada, de biquíni e com o corpo musculoso aparece com uma pintura no rosto e um brinco de penas. A foto vinha acompanhada da frase "apoiamos causas indígenas".
Valeska explica que não são só os posts nos grupos de Whatsapp que a levam a concluir que os homens, no Brasil, são ensinados a odiar mulheres. Esse seria mais um sintoma da misoginia. "Há vários. A alta taxa de feminicídios no país é um deles. Os 180 estupros por dia, outro. Sintoma é o que não falta."
"Ser homem é não ser gay. E isso é repetido o tempo todo"
"O pior xingamento para um homem, seja ele do perfil ou classe social que for, é ser chamado de 'viado'. Mas, no entendimento do imaginário popular, o problema é ser afeminado. Então, no centro da homofobia, há a misoginia", diz a pesquisadora. Esse machismo disfarçado aparece também entre os gays. "É um mundo profundamente misógino que vai diminuir as gays afeminadas, as 'pocs'."
Segundo Valeska, para assegurar a masculinidade se repete o imperativo negativo: não ser mulherzinha. Diversas piadas e provocações, portanto, vão girar em torno dessa ideia, e qualquer menção a alguma sensibilidade, como paixão ou choro, é passível de ser usada para chamar alguém de "viado".
"Para eles, homem é guiado por sexo, mulher usa isso para controlá-los"
As imagens também trazem a mensagem de que homens não conseguem se controlar em relação ao próprio desejo. É impossível renunciar ao sexo, mesmo que ajam de maneira desrepeitosa, enganando a companheira, por exemplo — o que, inclusive, é motivo de risos nos grupos. Valeska explica.
Não se controlar parte da premissa de que a monogamia é uma prescrição para mulheres, e a poligamia é consentida aos homens. O homem quando trai não se acha responsável, foi a outra mulher, malévola, que o seduziu
E a mulher, "com sua buceta", nas palavras deles, vai sempre conseguir o que quer, como se vê em mais um post compartilhado. Na imagem, há duas crianças de menos de dez anos. A menina puxa a calcinha para a frente e o garoto olha para dentro. A foto traz uma frase como se estivesse sendo dita por ela: "Com isso vou controlar sua vida e vou tomar sua casa e seu dinheiro".
Pela agressividade das imagens e o desrespeito com nós, mulheres, Universa não publica aqui essas imagens.
Diversas ilustrações mostram também mulheres com lingeries e falas sugerindo que elas estão interessadas no dinheiro do homem. Algumas delas menores de idade. "Oi, tio. Seu pagamento sai hoje ou amanhã?", é uma frase que acompanha uma delas. Em outra foto, o foco é na área genital e, na calcinha, se lê: "Aceito todos os cartões".
"É uma ideia horrível. Estamos em pleno século 21, com as mulheres conquistando milhares de coisas, mas a sua fonte de poder continua sendo sua buceta."
"Piadas estão ligadas à violência contra mulheres"
Valeska fala sobre o frequente argumento de muitos homens que, quando confrontados, respondem que "é só uma brincadeira". "Não existe piada inconsequente. Ela está diretamente ligada à violência contra mulheres", alerta.
"Não gosto do termo 'cultura do estupro' porque, no geral, quando o usamos, os homens dizem que não tem nada a ver com isso, porque nunca cometeram o que entendem como estupro: uma mulher violentada em um beco escuro. Então prefiro falar na cultura da objetificação, que leva à naturalização da violência. Isso está na piada que o pai faz quando diz: 'Prenda sua cabrita que o meu bode está solto', por exemplo. Está nas músicas, nos filmes", explica.
O que te faz rir diz muito sobre você, sobre o que você é. O riso, nesses grupos, é um sintoma do adoecimento da masculinidade
"Não falar nada é ser cúmplice"
Em 2020, Valeska fez uma live que repercutiu nas redes sociais já adiantando algumas conclusões da pesquisa sobre os grupos. Depois disso, conta, passou a receber muitas mensagens e e-mails de homens dizendo que nunca tinham enxergado os problemas que ela aponta nas conversas. "Eles agradecem, pedem para continuar, dizem que foram expulsos de grupos porque começaram a tretar. Há muitos homens abertos e dispostos a falarem uns com os outros", diz.
Há outros, porém, que, apesar de não concordarem, continuam no grupo, mas ficam em silêncio. "Não querem romper a broderagem, querem continuar a frequentar a 'casa dos homens'", diz. "Ouvi muito de alguns que receberam vídeos de meninas menores de idade fazendo sexo, bêbadas, um crime, horrorizados e comentando que não passaram adiante. Aí eu pergunto se falou algo, se tretou. Não? Então foi cúmplice."
Risos de postagens de piadas sobre crimes também são recorrentes, entre elas envolvendo o goleiro Bruno Fernandes, condenado pelo feminicídio de Eliza Samudio. Valeska conta que recebeu de mais de um dos seus "espiões" um vídeo em que um homem filmava uma mulher bêbada, sem seu consentimento, e a incitava a fazer sexo com outra mulher e com ele. Aparentemente, ela mostrava não ter a capacidade de consentir, o que é considerado estupro de vulnerável. Não houve repreensão, apenas risos.
Depois de listar o conteúdo tão pesado nas conversas entre homens, a reportagem questiona Valeska se ela viu algo de edificante nas conversas que recebeu. "Vou te desapontar, mas não. A única coisa legal seria esse senso de amizade, de 'broderagem'. Mas para nós, mulheres, não há nada de bom."
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