Diretora da Anvisa luta por um Brasil imunizado: "Durmo 4 horas por noite"
Entre reuniões e demandas profissionais, a diretora da Anvisa Meiruze Sousa Freitas ainda encontra tempo para falar com a imprensa. "Correria? Imagina!", brinca ao telefone. "É correria por um bom motivo. Só peço a Deus que me dê mais força ainda para poder continuar correndo."
No começo deste ano, Meiruze foi a relatora responsável por deliberar as vacinas do Instituto Butantan e de Oxford para uso emergencial no Brasil. A farmacêutica está na Agência Nacional de Vigilância Sanitária desde 2007, mas foi só no final do ano passado, em meio a pandemia de coronavírus, que assumiu o cargo de diretora no órgão que fiscaliza, entre outras coisas, remédios, agrotóxicos e cosméticos país afora.
De lá para cá, Meiruze dedica pelo menos 14 horas do seu dia em busca de um caminho para facilitar a distribuição de vacinas pelo Brasil. "Quando eu trabalho pouco, faço 14 horas de expediente. Durmo 4 horas por noite, mas não estou mal por isso, estou dormindo o suficiente para me sentir bem", conta.
Em entrevista a Universa, a servidora fala sobre como lidou com a pressão pública pela liberação da vacina, as dificuldades que o órgão agora enfrenta para garantir que toda a população brasileira se imunize e os desafios de proteger o trabalho de interferências politicas.
UNIVERSA - A senhora foi a relatora do processo que liberou o uso emergencial da Coronavac e da vacina de Oxford no Brasil. Consegue descrever como se sentiu no momento em que votou a favor da vacina?
MEIRUZE SOUZA FREITAS - Te digo que esse foi o grande desafio da minha carreira. Não foi só uma votação, a diretoria que coordeno foi a responsável por todo o processo de deliberação da vacina. Ainda assim, para chegar a uma decisão, trabalhei com muitas outras áreas. As vacinas eram produtos cheios de incertezas, por isso era importante que as diretrizes estivessem bem estabelecidas, porque quem ganha com isso é a nossa população.
A gente tem que lembrar que, não só o Brasil, mas o mundo, concedeu autorização emergencial ainda em estágio experimental. É uma responsabilidade enorme liderar esse processo e é preciso trabalhar com transparência, porque a população precisa das informações, a população precisa conhecer nosso trabalho, assim como a imprensa, os cientistas, os políticos também precisam conhecer. Então orquestrar essa relatoria foi muito mais do que ler um voto.
Trabalhamos para um bem maior: liberar as duas vacinas para uso emergencial, sabendo das suas incertezas, mas buscando minimizar os seus riscos e montar um programa de monitoramento eficaz.
Até o uso emergencial ser aprovado, existia uma cobrança muito forte pelo parecer favorável da vacina. Como foi lidar com essa pressão?
É muito difícil, porque trabalhamos com informações confidenciais e temos que saber em que momento essas informações podem ser disponibilizadas. Mas faz parte. Ao mesmo tempo, essa pressão nos fortalece, porque faz com que a gente mostre o trabalho da Anvisa, um órgão independente que trabalha em prol da saúde pública. Vou fazer um desabafo.
Recebemos cobrança de pessoas que não entendiam nada da área, só estavam atrás dessa liberação a qualquer custo. É importante ter uma avaliação séria dos dados, fazer uma autorização automática seria um risco para o Brasil.
Tivemos que levar em conta a nossa população, quais foram os acordos que as empresas fizeram para poder monitorar os lotes e, se a gente simplesmente aceitasse, perderíamos esse controle no país.
Você assumiu o cargo no final de 2020. Como a sua rotina mudou depois que chegou à diretoria da Anvisa?
A pandemia teve efeitos muito fortes para o Brasil. Na saúde, na economia. Logo no começo enfrentamos problemas de acesso a álcool em gel - nunca imaginei que o Brasil teria essa dificuldade por sermos um dos principais produtores do mundo. Em janeiro de 2020 eu já tinha entendido que passaríamos por uma pandemia. Em março começamos a trabalhar pesado com ações regulatórias para facilitar o acesso a equipamentos de proteção, kit de diagnóstico, ventiladores. Em maio e junho passamos pelo risco de desabastecimento de anestésicos. Durante toda a pandemia trabalhei com situações de estresse, então cheguei até a vacina "preparada".
E quanto à sua vida pessoal?
Lá em março a minha vida pessoal começou a ser impactada pela pandemia, mas é claro que a partir de dezembro as coisas pioraram. Passei todos os finais de semana trabalhando muito, sábado, domingo, à noite, de dia. A gente acaba deixando a vida pessoal para um segundo momento. Quando eu trabalho pouco, faço 14 horas de expediente. Durmo em torno de 4 horas por noite, mas não estou mal por isso, estou dormindo o suficiente para me sentir bem. Tenho que agradecer o equilíbrio da minha família e dos meus filhos; temos uma relação pessoal bem estabelecida que me ajudou nesse processo. Nos últimos meses eu dediquei a minha vida ao trabalho. Não me arrependo.
Apesar de muitas mulheres estarem na linha de frente do combate à pandemia, há poucas em cargos de comando. O que provoca essa baixa de representatividade?
Ainda há uma discrepância muito grande entre homens e mulheres nos cargos de gestão. Na verdade, eu sou a quarta diretora mulher da história da Anvisa. Estamos vivendo um momento histórico em que há duas mulheres titulares no quadro de diretores da agência. Cada vez mais eu vejo mulheres liderando pesquisas. Quando você olha para as universidades, principalmente para cursos como medicina, enfermagem, você verifica que há um número muito maior de alunas, mas ainda assim, os diretores de hospitais são homens. Isso está mudando, apesar de nós termos que enfrentar a dupla jornada. Precisamos superar barreiras e nos tornar líderes.
"Vacina é de fato eficaz se pessoas estiverem dispostas a tomá-la", a senhora falou durante uma entrevista coletiva. Qual a sua opinião sobre o movimento antivacina?
Esse movimento precisa ser apagado. É logico que existem situações em que os pacientes são contraindicados a receber medicação - e isso não acontece só com as vacinas de prevenção da covid, como também com qualquer outra. A forma de apagarmos esse movimento negacionista é com a divulgação de informações corretas, com o fortalecimento da ciência. Cada vez que a gente melhora a nossa comunicação e temos mais profissionais envolvidos nesse processo, esses movimentos negacionistas perdem a força. Esse é um desafio para a saúde pública global. Ao meu ver, esse assunto não merece palco.
Cloroquina, ivermectina, vitaminas. Como a senhora, enquanto diretora de um órgão de saúde, se posiciona a respeito da indicação de remédios sem comprovação científica para milhares de pessoas?
Temos que levar em consideração todo o contexto da pandemia, principalmente porque estamos trabalhando com o desconhecido. A gente está estudando bastante sobre o vírus e sobre os impactos, mas é um cenário de incerteza. Parece que quanto mais estudamos, menos sabemos. Quando surgem terapias que podem fazer algum efeito, eu até compreendo as pessoas buscarem alternativas. A Anvisa só atua para regular a medicação e investigar se há comprovação científica para que aquele remédio seja indicado contra alguma doença, ela não controla o que os médicos receitam no consultório.
Hoje, nós não temos medicamentos registrados no combate da covid. Nossa esperança está na vacina.
No Brasil, a vacina virou também uma guerra política. Como a senhora avalia a política no centro de decisões que deveriam ser científicas?
Tentei trabalhar para que as decisões politicas ficassem de fora do processo de autorização da vacina. A gente conseguiu blindar muito bem isso na questão técnica, analisando os dados, considerando referências científicas, sem nos importarmos quem seria o "líder" da vacina. O que importou para gente foi a avaliação dos dados.
A nossa missão é que todos tenham acesso à vacina, e vacina de qualidade. As decisões da Anvisa precisam estar sempre baseadas em critérios científicos. Embora tenha parecido que estávamos atuando sobre uma pressão politica, aqui dentro nós falávamos: "isso não importa".
Como é o diálogo entre a Anvisa e o Instituto Butantan?
A Anvisa é um órgão do Sistema Único de Saúde. O Butantan, assim como a Fiocruz, também são do SUS. A nossa comunicação passa por um canal de respeito. Durante o processo de deliberação da vacina, se faltava algum documento ou dado, éramos claros com o Butantan para que eles pudessem nos fornecer esses materiais. Não aprovaríamos a vacina se os riscos que ela oferecia fossem maior do que os benefícios. Fizemos muitas reuniões. Tive, inclusive, uma reunião com o presidente do Butantan, Dimas Covas, para deixar claro que trabalhávamos para o bem do Brasil e que as discussões politicas estavam à parte das nossas colocações, respeitando o instituto, inclusive nos nossos posicionamentos.
Há uma previsão de quando todos os brasileiros estarão vacinados?
Gostaria de informar um prazo, mas a gente vê que todo o mundo enfrenta dificuldades em relação à quantidade de vacinas disponíveis. Estamos trabalhando para ter o Brasil imunizado o mais rápido possível, mas infelizmente eu não consigo falar quando a nossa população estará vacinada. Só queria dizer o seguinte: que estou trabalhando fortemente para isso. O meu foco de trabalho tem sido pensar em como ampliar as estratégias de acesso a mais vacinas.
A pandemia ainda traz muitas incertezas, a gente ainda precisa aprender sobre as questões relacionadas às mutações. O cenário ainda é de buscar acesso para que tenhamos até mesmo mais vacinas desenvolvidas aqui no Brasil, que a gente tenha mais autonomia na produção de insumo farmacêutico, que o próprio setor farmacêutico entre mais pesado nesse processo. Se dependesse de mim, a gente teria o Brasil imunizado antes de julho, mas é uma ação que vai além do meu trabalho, depende de uma cadeia produtiva.
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