Feminicídio que chocou Argentina leva milhares de mulheres às ruas do país
Depois de 18 denúncias não atendidas, Úrsula Bahillo, argentina de 18 anos moradora de uma zona rural da província de Buenos Aires, foi morta com 15 punhaladas. O crime ocorrido no começo de fevereiro foi cometido pelo ex-namorado, Matías Ezequiel Martinez. O policial não aceitava o fim do relacionamento com Ursula e começou a persegui-la e ameaçá-la. Foram sete meses de sofrimento silencioso, até que ela resolveu procurar ajuda e denunciá-lo.
"Eu não aguento mais amiga, estou muito triste. Ele disse que vai me matar", contou Ursula a uma amiga em novembro, em áudio divulgado na imprensa local.
O fato de a jovem ter procurado ajuda e, ainda assim, a Justiça não ter determinado uma medida protetiva que o impedisse de se aproximar da vítima ou de que Ursula não recebeu um botão antipânico ascendeu a discussão sobre a violência machista exercida pelas forças policiais sobre suas companheiras.
Segundo dados da ONG Casa del Encuentro, entre 2010 e 2020, somente na região da província de Buenos Aires, 48 mulheres foram assassinadas por seu parceiro ou ex-parceiro policial. O acobertamento dos agressores por parte de seus colegas, ou a suspeita de que isso aconteça de maneira institucional, evidenciadas pela morte de Ursula, levaram ao início de uma onda de protestos no país.
Nesta quarta-feira (17) foi a vez da organização Ni Una Menos, que desde 2015 luta contra a violência de gênero na Argentina, alçasse sua bandeira em uma série de manifestações em frente aos tribunais do país. As milhares de manifestantes que se reuniram em frente ao Palácio de Justiça na capital Buenos Aires exigem que governo tome medidas urgentes para evitar mais mortes e impedir que os agressores fiquem impunes.
A mãe de Ursula, Patricia Nasutti, esteve presente no ato e horas antes havia se reunido com o presidente argentino Alberto Fernández na Casa Rosada, ocasião em que o mandatário prometeu atender seus pedidos por justiça. "Pedimos ao presidente como mãe e pai que precisamos que a Justiça mude, para que outras não acabem como a Ursula", disse Patricia, que receberá o presidente em sua casa dentro de duas semanas.
Protestos
Dentre as tantas mulheres que voltaram às ruas depois que uma grande mobilização levou à legalização do aborto no país, estava a tatuadora Sabrina Gazolo, 28. A jovem contou a Universa que sofreu na própria pele o terror de ser ameaçada e agredida pelo parceiro. O episódio, relatado em português, ocorreu no Rio de Janeiro no início da pandemia, onde ela morava até alguns meses atrás com o namorado chileno. "Eu queria voltar para a Argentina, mas as fronteiras estavam fechadas. Ele investiu contra mim, usando violência física, em duas oportunidades em uma mesma semana", conta a tatuadora que também sofria violência econômica e psicológica.
"Na primeira vez ele me ameaçou porque eu arrumei as minhas malas e disse que ia embora. Ele começou a puxar o meu cabelo e a me empurrar. Na segunda vez, ele literalmente me chutou. Aí eu já estava com muito medo de ficar na mesma casa porque não sabia se ele poderia me matar", conta a jovem que se refugiou na casa de uma das poucas amigas que mantinha no Rio, antes voltar à Argentina.
No processo de mudança, acabou se expondo e contraindo covid-19, doença que lhe deixou sequelas e exige que ela faça uma operação para recuperar o paladar e olfato.
"Eu acho que ainda temos que mudar muita coisa como sociedade, a gente ainda naturaliza muitas questões de violência de gênero", opina a vítima que assim como Ursula tentou denunciar seu agressor, quem segundo ela já tem duas denúncias por violência de gênero registradas na Justiça brasileira, mas que até agora não teve nenhum parecer da delegacia da mulher do Rio.
A realidade da dona de casa Carla Donato, 38, é semelhante. Ela, que mora em um dos municípios da zona metropolitana de Buenos Aires, foi à manifestação com as primas para pedir pelo fim de casos como os que ocorreram em sua família. "Viemos todas apoiar a mãe da Ursula, também temos dois feminicídios na família. Uma prima nossa foi sufocada pelo marido, que a matou na frente dos filhos", relata.
"Nesse caso, a justiça foi feita porque ele pegou prisão perpétua. Mas no caso da minha irmã, por exemplo, que também foi vítima de um feminicídio, não se fez justiça, pois classificaram seu assassinato como como uma simples briga de rua. Nós não queremos que isso volte a acontecer", explica.
"Eu vim apoiar o Ni Una Menos para que seja feita justiça pela Úrsula e por tantas outras meninas que estão sofrendo violência de gênero. Por muitos outros casos que também não ficam conhecidos porque as mulheres não falam por vergonha ou por medo. Porque, às vezes, estão sozinhas e não têm para onde ir, porque têm filhos e não sabem o que fazer" justifica a dona de casa Eli Gonzales, 35.
Ao ser questionada por Universa sobre os motivos que a levaram à manifestação, ela responde: "Porque todas temos filhas, irmãs, primas e não queremos que aconteça nada a nenhuma outra mulher. Que elas não sejam uma Ursula mais. Espero que as leis sejam aplicadas e por isso estou aqui", resume.
"Vivemos em uma sociedade que nos coisifica", diz manifestante
Com uma realidade completamente diferente, a professora de psicologia na Universidade de Buenos Aires, Malena Alenda, 39, responde ao mesmo questionamento dizendo que "é necessário estarmos mobilizadas hoje pedindo justiça para Ursula porque a violência patriarcal nos atravessa cotidianamente. Ainda que pareça que são casos extremos ou únicos, essas situações que terminam em feminicídio são comuns", afirma.
"Vivemos em uma sociedade que nos coisifica, que nos trata como objetos e que, em múltiplas circunstâncias, como a que se dá neste caso, terminam levando a vida de uma jovem que decidiu terminar uma relação com um homem violento", diz a professora, que associa a cultura da violência ao conceito de amor romântico que, segunda ela, muitas vezes associa a dor e o ciúme à manifestação de afeto.
Para a radiologista Melane Lavella, 26, "é preciso mudar muitos dos nossos costumes, aqui e em muitas outras partes do mundo, como o de aceitar a violência e tomá-la como parte do cotidiano. Precisamos que essa mudança seja feita também na Justiça, no Estado, e estamos hoje nas ruas porque este é o único lugar onde essa transformação pode ocorrer", ressalta ela quem diz ter vivido episódios de violência de gênero durante a infância.
Já Anita, quem prefere não dizer o sobrenome, microempresária 33, preparou materiais gráficos para a manifestação. "Estamos fartas! Juízes cúmplices, policiais cúmplices! Essa garota fez 17 denúncias!", grita. Ela diz não querer se identificar por medo. "Eu não posso te dizer meu sobrenome porque aqui é muito complicado, a polícia não nos cuida, os meios de comunicação não nos cuidam, ou seja, não estamos protegidas, então, prefiro não me expor", diz.
Resposta do governo
Em resposta ao apelo popular do caso de Ursula, o presidente convocou os governadores a criar um Conselho Federal para a Prevenção e Abordagem de Feminicídios, Travestiídios e Transfeminicídios. "Sejamos protagonistas das transformações necessárias para transformar uma sociedade machista em uma sociedade livre de violência por motivos de gênero", disse o presidente do país.
A proposta é que este conselho possa trabalhar de forma articulada com diferentes organismos nacionais e provinciais para ter uma abordagem mais eficiente e articulada em termos de prevenção, investigação, sanção, assistência e reparação de violências extremas por motivos de gênero.
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