Elisama Santos: "Pandemia acabou com ilusão de pais perfeitos"
Estamos prestes a completar um ano de pandemia e pais e mães nunca estiveram tão próximos de seus filhos quanto agora — pelo menos fisicamente. O que parece ser bom para a relação familiar, pode ter efeito contrário: Elisama Santos, psicanalista, educadora parental e consultora em educação não violenta, acredita que os filhos estão pagando a conta pelas frustrações que um ano inteiro dentro de casa gerou nos adultos.
"As crianças estão pagando a conta. No momento em que os adultos estão sofrendo, é quase inevitável que as crianças sofram ainda mais", alerta.
Em entrevista para Universa, a autora dos livros "Educação Não Violenta" e "Por que gritamos?", fala sobre os efeitos desse período na relação entre pais e filhos, a ilusão da paternidade perfeita e as lições que o Big Brother Brasil nos dá sobre educação.
UNIVERSA: Como fica a relação entre pais e filhos durante a pandemia? Quais os efeitos deste período para crianças e adultos?
Elisama Santos: De maneira geral, os pais estão muito cansados e culpados. Têm ligação para retornar para o chefe, almoço pra fazer e a criança pedindo: "Mãe, limpa meu bumbum". A gente extrapola às vezes.
Se eu tinha uma ilusão de que seria a mãe perfeita, o pai perfeito, isso morreu na pandemia. Estamos cara a cara com as nossas limitações. O problema é que as crianças estão pagando a conta. No momento em que os adultos estão sofrendo, é quase inevitável que as crianças sofram ainda mais.
Afinal, elas recebem a agressividade que deveria ir para o nosso chefe, para outros adultos da família. A gente cresceu ouvindo o adulto nos culpando pelo descontrole dele, falando "você está me deixando nervosa" ou "não me faça te bater". Então, nesse momento de pandemia, cheio de frustrações, as chances de descontar na criança são muito grandes.
Um dos conceitos que a disciplina positiva sugere é que os pais valorizem os sentimentos dos filhos e dialoguem com as crianças. Por que isso é importante?
Nós tínhamos essa ideia que nossos pais eram perfeitos, incríveis, sabiam absolutamente tudo, mas não existe humano que não erra. Volta e meia, meu filho fala: "Mãe, não gostei desse jeito que você falou comigo" e eu pergunto como ele se sentiu para entender o problema. Não vou deixar que o "não" desapareça da nossa relação, mas preciso entender que ele também tem o direito a dizer não. Meu papel, quando ele erra, é mostrar os limites sem humilhar. A melhor solução é dar escolhas para ele, mas escolhas que sejam limitadas, e que vão aumentando com o tempo, conforme a criança ganha mais autonomia, mais confiança. A gente precisa desconstruir essa ideia de poder sobre os nossos filhos, esse poder precisa ser dividido como é em qualquer outra relação. A criança aprende limites quando os limites dela são respeitados.
Como fazer isso sem criar uma família em que as crianças são o foco e os pais ficam em segundo plano?
Prestando atenção. Volta e meia a gangorra desequilibra, isso acontece em qualquer relação: casamento, trabalho, família. E a atenção faz a gente voltar para o eixo. A gente tem a ideia de que o equilíbrio está numa linha reta, mas se você observa um ciclista ou um equilibrista, ele balança o tempo todo. Se pende pra direita, ele joga o corpo pra esquerda e vice-versa, e para fazer isso é necessário prestar atenção.
É um exercício de perceber todos os dias como estou me sentindo antes de olhar para o outro. Se eu não cuido de mim, como vou cuidar de uma criança? Essa ideia de que a disciplina positiva olha somente para a criança é uma ilusão, justamente porque é impossível cuidar da criança sem olhar para o adulto primeiro.
Você tem feito associações entre o Big Brother Brasil e os impactos de uma educação violenta na vida adulta. Que episódios desse primeiro mês de reality ajudam a refletir sobre a forma como educamos?
Quando Karol começou a torturar o Lucas, mandar baixar a cabeça, não olhar para ela, comer sozinho para aprender, as pessoas disseram "nossa, que crueldade". Realmente, é cruel, mas é a base da educação tradicional. A prova disso é que a gente acha totalmente normal gritar e ameaçar bater numa criança no mercado.
Nem com cachorro a gente acha normal fazer isso, mas com criança pode. E ninguém fala nada.
No BBB, Karol xinga o Lucas, ele abaixa a cabeça e ninguém interfere. Todo mundo vê ali uma situação em que não pode se meter. É exatamente o que a gente faz quando vê um pai ou uma mãe fazendo isso com a criança no meio da rua.
Várias vezes, a Karol chamou o Lucas de bosta e mandou ele ficar quieto. Não sei calcular quantas mães chegam para mim reclamando que o filho está respondendo. Ou seja, o autoritarismo é tanto que os pais não aceitam que os filhos respondam; querem gritar e querem que a criança escute calada. O BBB está escancarando na TV algo que a gente faz com as crianças todos os dias.
É possível dizer que houve uma conscientização dos pais em relação a bater em crianças nos últimos anos, desde a Lei da Palmada [de 2014]? O que falta para melhorar esse cenário?
Acho que a lei da palmada nasceu como reflexo de uma mudança nas pessoas. No ritmo que a gente gostaria? Não. Em todos os lugares? Não. É uma mudança que ainda está concentrada na classe média, mas é uma mudança. Dependendo do bairro que você está, bater em criança ainda é a coisa mais normal do mundo. Mas acredito que isso vai mudar. Espero que meus filhos e meus netos vivam num mundo em que bater em criança é completamente anormal, assim como bater em mulher, bater em idoso, bater em animal.
A gente ainda não vê criança como ser humano. Falta a gente se perguntar se falaria em determinado tom com um adulto, porque a gente fala "ah, mas é criança", como se criança fosse uma subcategoria da sociedade. Se algo é violento para um adulto, é ainda mais violento para uma criança. Gritar, humilhar, rir do medo da criança, fazer chacota. Falar ironias como "chora, chora mais alto que o vizinho não ouviu". É uma atitude cruel vinda das pessoas que essa criança mais ama, os pais, os avós, os tios.
Quais são os efeitos, na cabeça de uma criança, quando amor e violência vêm do mesmo lugar?
Nós nos acostumamos a relações que nos ferem. Esses conceitos [amor e violência] nunca deveriam andar juntos. As pessoas me dizem: "Nossa, mas isso que você fala sobre educar vai deixar meu filho mal acostumado". Mas o que é um bom costume? Aceitar ser humilhado, mendigar amor, ficar calado para o outro não deixar de nos amar? Se for isso, prefiro que meus filhos cresçam mal acostumados, quero uma geração inteira de mal acostumados.
Todos nós nascemos sabendo que merecemos amor, um bebê chora sempre que precisa de alguma coisa, mas à medida que a gente cresce, aprende que esse choro pode e aquele não, que aquele choro faz a mãe deixar ele sozinho de castigo. "Você é uma boa filha se você não responde, se você não chora, se você obedece". Aí a gente aprende que aquele amor que era garantido, na verdade é condicionado. A relação com nossos pais na infância é a relação mais abusiva que a gente vive.
Ainda ouvimos com frequência frases como "eu apanhei e aprendi" ou "minha mãe me educou assim e eu não fiquei traumatizado". Como argumentar contra isso? E como evitar que os pais não reproduzam com os filhos as palmadas que receberam?
No final das contas, todos reproduzimos em maior ou menor grau, porque é o caminho que nosso cérebro conhece. O importante é perceber que tem alguma coisa errada com a educação que a gente recebeu. No meu caso, lembrei de como eu me sentia quando eu apanhava, e não queria que meu filho se sentisse da mesma forma. Quando eu estava grávida do meu primeiro filho, prometi que nunca bateria neles, e foi a promessa mais difícil que eu fiz na vida, porque até hoje eu tenho vontade de bater. Mas enquanto a gente seguir repetindo "eu sou o que sou graças às palmadas que levei", a gente não reconhece o carinho, a cama quentinha, o cuidado. É isso que educa, não a palmada.
A sociedade é tão cega que a gente agradece por ter apanhado, e não por ter sido cuidado. A gente precisa entender que foi educado apesar da palmada, e não graças a ela.
Você costuma usar exemplos reais, da sua experiência de maternidade, quando fala sobre educação não violenta. Acredita que isso aproxima você das mães que te ouvem? Como é aplicar com seus filhos os conceitos que você estuda?
Nós somos humanos, vamos errar, é fato. Meu filho também fala que não gosta de mim quando está com raiva. Compartilhar meus erros é meu jeito de falar para as pessoas que todo mundo erra, e que a gente não erra porque é incompetente, mas porque é parte do processo. Esse medo de errar vira uma ansiedade para as pessoas. Elas pensam que, se não conseguem, não nasceram para ser mães ou pais, mas isso não existe.
Dá para dizer que as crianças de hoje serão uma espécie de geração teste de uma educação não violenta? Como saber se esse é o caminho certo?
Por mais pioneiro que isso tudo pareça, não é. Adoraria dizer que fui eu que inventei, mas tem psicólogos e psicanalistas falando isso há 50, 60 anos. É que agora esse conceito saiu dos consultórios, da academia, e está aberto. E a gente tá vendo o resultado da educação tradicional, que não é legal, não tá bom. A gente não sabe dialogar, lidar com nossos sentimentos. Além disso, não faz sentido criar crianças para um mundo que não existe mais. Esse padrão de obediência, em que a mãe obedecia o pai, que obedecia o chefe, não existe mais. A gente vai continuar moldando as crianças para isso?
Como você vê movimentos como o childfree? O que a vontade de tirar crianças do convívio social diz sobre a nossa sociedade?
Pra mim, é uma reafirmação da criança como subcategoria social. Você não cria um ambiente negros free, mulheres free. A gente não acha normal proibir nenhuma categoria, mas criança tudo bem. O childfree escancara nossa pouca habilidade em lidar com seres emocionais e que ainda não aprenderam a controlar suas emoções. A gente vê a infância como o caminho para chegar à vida adulta.
A gente fala que criança é futuro, mas é presente também. Ela não vai se tornar alguém, ela é alguém, e a gente se recusa a ver isso.
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