Artista transexual lança curta sobre sua vida enquanto faz bico na faxina
Ser uma mulher transgênero, negra, em uma cidade do interior com 122 mil habitantes não foi fácil para ela. O preconceito, as incertezas e os anos no armário viraram combustível poético no curta-metragem "A Dama de Paus", disponível no YouTube. "Nascida disfarçada, sem forma, sem rosto, sem poder gerar, com destino incerto", diz Lua Ayo Brandino, 22, no filme em que conta sua própria história.
Nascida em Itatiba (SP), a artista trabalha como faxineira para se sustentar. O curta é uma realização feita a várias mãos amigas, narrada com textos de Lua e imagens que buscam expressar o complexo processo pelo qual ela passou até se entender como mulher trans.
"Eu não me entendia"
"Eu morava na área rural até os meus 14 anos, então, só fui ter internet quando vim para Ibatiba", conta ela. O motivo da mudança foi a separação de seus pais, de origem muito humilde. Sem referências LGBTQ+, tudo que Lua sabia era que havia um estranhamento em si mesma.
"Eu não me entendia, achava que tinha que seguir um roteiro, crescer, arrumar um trabalho na zona rural e ficar ali. Só quando eu fui para a cidade e comecei a trabalhar como jovem aprendiz conheci histórias e pessoas diferentes e me questionei sobre a minha sexualidade. Naquele momento, me entendi como gay", conta ela, que não contou para ninguém as dúvidas que enfrentava.
"Eu esperei dos 15 aos 18 anos para contar. Fiquei com pessoas, mas evitei ter uma relação. Tinha muito medo da reação da minha família, que nunca tinha tido contato com uma pessoa LGBTQ+. Com 18 anos, escrevi uma carta e me assumi para a minha mãe. Ela respondeu outra carta, dizendo que estava tudo bem", conta Lua.
"Aqui, fazem o sinal da cruz quando eu passo"
Depois de se assumir gay, a artista percebeu que ainda não estava confortável em si mesma. "Comecei a ver que aquilo não me satisfazia, fez sentido naquele momento, mas não era totalmente verdade. Acho que sempre pensei em transgeneridade, mas com medo. Aqui na cidade, os LGBTs sofrem bullying mesmo, as senhorinhas fazem o sinal da cruz quando me veem", conta ela, com um sorriso triste.
Com tanta animosidade, se entender — e, sobretudo, se assumir — como mulher trans demorou bastante tempo. "Ganhei uma saia de uma amiga aos 19 anos e fui ao mercado. Minha mãe perguntou se eu iria daquele jeito, disse que sim. Eu gostei muito de usar aquela saia, mas tive que trocar de roupa, porque as pessoas me olhavam muito. Eu já sabia o que estava acontecendo, mas mantinha a persona masculina para evitar o constrangimento e o cansaço", conta ela.
Só que Lua entendeu que o desgaste em se esconder era maior que o de assumir para o mundo como é. "Esse personagem que eu fazia era muito cansativo. Se era para gastar energia, é melhor usar energia para afirmar quem eu sou e não para fingir pelo resto da minha vida. E aí, veio toda a preocupação de um corpo trans, já que o resto da minha vida pode ser só até os 35 anos", diz ele, sobre a baixa expectativa de vida para pessoas trans no Brasil.
Aos 20, o início da transição
Há dois anos, Lua vive a transição e conta que o seu isolamento começou antes do imposto pela pandemia do coronavírus. "Vou começar a hormonização agora, pensei muito nisso, porque a transição não é fácil e é irreversível. Eu fiquei isolada desde antes da pandemia, por muito tempo. Frequentar lugares sem saber se eu poderia entrar, se eu seria respeitada ou não. Um corpo trans passa por esses aspectos, há o isolamento da família e do afeto", diz.
Hoje, ela mora sozinha. A mãe não a aceita plenamente e ela consegue se sustentar com bicos que faz como faxineira. "Mesmo para fazer faxina, é difícil conseguir sendo trans. Emprego CLT então... Eu mando currículo e não chegam nem a responder, nunca fui entrevistada", diz ela, que tem o segundo grau completo.
Dor escrita
Escrever é um hábito antigo de Lua e seus textos foram usados em seu filme, em um registro autobiográfico e poético. "Comecei a pensar em filmar as coisas e uma amiga me ajudou com esse conteúdo. Outra amiga soube de um edital da Secretaria de Cultura de Itatiba e nos inscreveu", o filme foi produzido assim, cheio de parcerias.
"No tarô, a Dama de Paus é boa, positiva, abundante, mas na vida, ser uma dama de paus pode ser excludente. Eu quis falar disso no filme, que também tem muitas referências à minha fé", explica ela, de família católica. "Com 14 anos, eu rezava muito, pedia respostas, mas nunca recebi nenhuma", conta. Lua quer continuar sua trajetória artística. "Tenho a pretensão de continuar em um meio artístico, penso em outros projetos."
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