"Não considero que Frida Kahlo foi feminista", diz sobrinha-neta da artista
O rosto e algumas das principais obras da pintora mexicana Frida Kahlo (1907-1954) estampam cadernos, bolsas e camisetas mundo afora. Com seus trajes típicos e as sobrancelhas naturais, ela virou não só uma das artistas mais conhecidas do México, como também um símbolo do feminismo, criando alguns debates em torno da sua figura.
"Mas eu não considero que Frida Kahlo foi uma feminista. Ela foi militante política, mas não feminista nos termos em que conhecemos agora", diz a fotógrafa Cristina Kahlo, sobrinha-neta da artista.
Cristina participou na última quarta-feira (24) de uma coletiva de lançamento do documentário "Frida: Viva la Vida", que estreia no próximo 8 de março, Dia Internacional das Mulheres, no canal National Geographic em todo o mundo.
Dirigido por Giovanni Troilo, o filme trata de Frida como artista: livre, apesar das limitações de um corpo torturado, mas também ícone e um símbolo do feminismo contemporâneo. Cristina é uma das entrevistadas no documentário.
"Frida não foi feminista, considero que foi muito feminina. A realidade é que dependeu, econômica e emocionalmente, dos homens, ainda que em alguns momentos tenha manifestado que queria ser mais independente. Se não era Diego Rivera, de quem era fortemente dependente emocionalmente, havia Nickolas Muray, fotógrafo que com quem ela teve uma relação duradoura e apoiou-a financeiramente", diz a sobrinha-neta.
Em sua militância, Frida estava mais preocupada com as questões de classe e não militou em movimentos de mulheres. Aos 21 anos, filiou-se ao Partido Comunista Mexicano e esse foi o tema de alguns de seus quadros, como "O marxismo dará saúde aos doentes" (1954). Ela também chegou a ter um romance com Leon Trótski, um dos líderes da Revolução Russa de 1917, que se exilou no México nos anos 1930.
Manteve relações com homens e mulheres, mas em cartas, diários e em parte de suas pinturas, Frida deixa claro que seu grande amor sempre foi o muralista mexicano Diego Rivera, com quem se casou duas vezes e se separou outras tantas.
Uma mulher que seu deu a liberdade
"Efetivamente, Frida foi uma mulher que se deu todas as liberdades, tinha uma mentalidade muito aberta para a época, mas não se poderia encaixar dentro do feminismo particularmente", afirma Cristina Kahlo.
Apesar da desigualdade entre homens e mulheres não ser parte da sua militância, se vivesse no mundo de hoje, diz a fotógrafa, Frida possivelmente seria vista nos protestos contra a violência de gênero. "Como uma mulher forte que era, porque tinha esse lado também, acredito que ela definitivamente seria feminista se vivesse hoje."
Como 'descobriu' a tia-avó famosa
Cristina nasceu em 1960, seis anos depois da morte de Frida Kahlo, em 1954, e conta que ouvia do pai histórias da tia pintora que adorava festas, música e que tinha animais exóticos em casa. Foi só aos 10, por acaso, que descobriu a intensidade e a relevância da obra da artista.
"Eu me lembro de abrir, na biblioteca de casa, um livro que se chamava 'Cinco pintores mexicanos', que tinha algumas ilustrações de obras de Frida Kahlo, entre as quais a que se chama 'A coluna quebrada' ['La columna rota']. Foi um choque tremendo ver essa tia, que para mim era tão alegre, rodeada de animais e flores em um jardim maravilhoso, com a coluna quebrada. Esse foi o meu primeiro impacto diante de Frida Kahlo", conta.
O quadro citado retrata as dores que a pintora sentia após uma das cirurgias que fez na coluna, por conta de um acidente de trânsito que sofreu aos 18 anos.
Com o tempo, Cristina Kahlo começou a estudar e a pesquisar sobre a tia famosa, não só a partir das histórias de família, mas também de suas obras. Em 2007, foi uma das curadoras da parte fotográfica de uma exposição em homenagem a Frida Kahlo, realizada no Museu de Belas da Cidade do México.
"O mais complicado para mim não foi construir o personagem de Frida sendo da família, mas foi me construir enquanto artista", diz Cristina, que também cresceu sob a influência artística do bisavô, Guillermo Kahlo, que era fotógrafo.
"As pessoas pensam que é muito fácil, que é uma vantagem ser da família Kahlo, mas ao contrário, porque você tem que se construir desde os seus próprios méritos, do que você faz e do que é", conta.
Ao longo da carreira, Cristina Kahlo teve obras exibidas em mais de 40 exposições coletivas em México, França, Alemanha, Suíça, África do Sul, Bélgica e nos Estados Unidos.
"Fridomania": a artista como estandarte
Cristina conta que, quando estava na escola, nos anos 1970, tinha que soletrar o sobrenome Kahlo, porque ninguém o conhecia. "Hoje todo mundo sabe como se escreve, porque Frida se tornou um ícone popular", conta.
Essa virada aconteceu bem depois da morte de Frida, afirma Cristina, quando em 1983 a escritora Hayden Herrera publicou em inglês a primeira edição do livro "Frida: a biografia", com entrevistas com pessoas que conviveram com a artista e pesquisa sobre a obra e as cartas que ela deixou.
"Como Hayden Herrera é chicana [de origem mexicana] a obra chegou aos Estados Unidos e às feministas chicanas, que tomaram Frida como um estandarte. Daí parte essa ideia, um pouco errada, de que ela foi feminista", conta a fotógrafa.
"Essa 'Fridomania' está convertendo Frida em uma espécie de santa, perdendo a perspectiva de que foi uma mulher de carne e osso, que corria sangue pelas suas veias, que gostava de música e tinha altos e baixos", diz. "Não é uma figura plástica, não é uma imagem em uma bolsa, foi uma mulher como todas nós", destaca.
"Seu ensinamento é a autenticidade"
Cristina diz que um dos pontos fortes do documentário "Frida: Viva la Vida", que será lançado agora pela Net Geo, é exatamente mostrar Frida não só como artista, mas também como mulher, em sua profunda complexidade.
"Não podemos falar como se Frida Kahlo fosse a única mulher que sofreu no mundo. Acho que ela se converteu em uma espécie de representante das mulheres, porque você pode se identificar com diversas facetas da sua personalidade, ou seja, se você foi uma mulher enganada pelo marido, se tem alguma deficiência física, se não pode ter filhos ou sofreu um aborto", afirma.
Frida contraiu poliomielite aos seis anos e foi vítima de um acidente em um ônibus escolar aos 18, obrigando-a a conviver com dores e a esconder as pernas (uma mais curta que a outra) nas longas saias mexicanas. No plano emocional, a pintora teve um conturbado relacionamento com Diego Rivera, diversos amantes e nunca conseguiu realizar o sonho da maternidade.
"Às vezes as mulheres pensam que colocar flores na cabeça ou se vestir de tehuana é ser Frida Kahlo. A partir da minha pesquisa e da visão que tenho sobre ela, eu diria que seu ensinamento é a autenticidade. Não é preciso se vestir de Frida para ter um valor pessoal ou para superar uma vida difícil", diz.
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