Sargento Priscila: "Quero ser militante por outras pessoas trans como eu"
"Sou uma mulher transexual e sargento da Polícia Militar de Santa Catarina. Batatlhei muito para que meu nome social, Priscila Diana, fosse reconhecido em meus documentos. Mas quando eu peguei a minha carteira de identidade, na terça-feira (23), depois de uma batalha judicial, foi como se tivesse destruído o último pedaço do meu passado. Apesar de ter um novo nome feminino desde 2020 em meus documentos, o antigo, masculino, sempre aparecia em algum lugar, porque a corporação ainda não havia cumprido uma decisão que a obrigava a fazer a alteração no sistema.
Depois de ver minha foto e nome no documento, saí muito feliz do batalhão, com sorriso de orelha a orelha. Era o que restava para ser reconhecida como uma mulher trans na corporação depois de 23 anos atuando no serviço.
Antes da transição, era algo muito desgastante vestir a farda. Era como se coexistissem duas pessoas dentro do mesmo uniforme, tanto que quando coloquei a farda como uma mulher trans pela primeira vez, no início de 2020, foi uma felicidade tremenda, algo que nunca senti.
"Tive que correr atrás para ter meu direito reconhecido na PM"
Para internamente ter meu direito reconhecido, precisei me expor à imprensa do Brasil inteiro. A minha briga pelo reconhecimento acabou sendo burocrática porque a PM não mudava o meu nome no sistema.
O apoio, eu sempre tive dentro da corporação, por parte dos colegas e superiores diretos. Trabalho no Planalto Norte de Santa Catarina. Quando fui a Florianópolis pegar a minha identidade funcional, encontrei policiais no batalhão e até fiquei com certo receio da recepção, mas chegaram vários a mim se solidarizando. Acabou sendo uma surpresa boa.
Hoje, mesmo com o meu nome já reconhecido, ainda tenho um pouco de mágoa da PM porque tive que correr atrás para ter meu direito.
Quando o advogado Marcelo Wacheleski resolveu me ajudar, estava numa fase financeira difícil. Eu não precisaria entrar na Justiça para isso. Era apenas uma alteração administrativa, como aconteceu com outros amigos transgêneros em demais cargos públicos e que não tiveram dificuldade.
Foram momentos difíceis, pois só consegui viver em paz depois da minha transição, que começou em meados de 2011.
"Nunca tive paz, desde criança"
Antes de 2011, vivi momentos bem conturbados. Entrei na corporação mais ou menos aos 20 anos de uma maneira meio complicada emocionalmente, pois estava insatisfeita sobre como eu era e vivia. Nunca tive paz desde criança.
Por outro lado, independentemente de não estar feliz ou não, sempre busquei fazer o bem às pessoas, e foi na PM, que descobri essa possibilidade de trabalhar com algo positivo para alguém. É difícil até mensurar o sentimento de salvar a vida de uma pessoa.
Consegui minha paz muito tarde. Sou do interior do Paraná, de uma pequena cidade chamada Rio Negro, e sou a segunda filha de uma geração de três irmãos. A primeira lembrança que eu tenho de me sentir mulher, não me recordo ao certo a idade, foi ainda criança. Só que não sabia direito o motivo de meu corpo ser masculino e não me sentir bem daquela forma.
Vi que não me identificava com o gênero masculino quando percebi que gostava de roupas femininas. Eu pegava as da mãe e colocava toalhas na cabeça fingindo ser o cabelo. Como vim de uma família bem rígida, tinha muito medo de manifestar essas coisas, pois também desde pequena fui criada com a noção de que para grande parte da sociedade seria uma atitude errada da minha parte.
"Só contei que era mulher para minha família aos 39 anos"
Esse processo de contar para a minha família sobre como eu me identificava aconteceu somente na minha fase adulta, aos 39 anos. A mãe desconfiava, pois me flagrava com roupas dela sem contar para o meu pai, já que nunca fui uma criança com aceitação com o sexo masculino. As roupas de menino, por exemplo, eu usava sempre o que me davam, nem tinha vontade de escolher. A minha identificação de gênero foi guardada em sete chaves desde pequena porque fui criada imaginando que era algo errado, sabe?
Eu preparei um encontro com meus pais para contar. Disse que gostaria de falar com os dois. Nós sentamos à mesa e falei o que pensava. Tive muito receio, mas recebi uma boa recepção, apesar de serem pessoas idosas com pensamento tradicional e não saberem ao certo o que isso significaria. Meus pais me acolheram por causa do amor e afeto. Só que meu pai ainda não consegue me chamar pelo nome feminino.
"Escondi a transição de gênero; usava faixa nos seios"
Isso aconteceu já perto dos 40. Antes disso, fazia acompanhamento e a transição de gênero, mas ninguém da família ainda sabia. Foi algo que escondi. Visitar meus pais na cidade deles neste processo e quando iniciei com os hormônios femininos, passei a ter seios e usava uma faixa apertada para escondê-los. Sobre a cirurgia de feminização da face, disse que era um procedimento por causa de um problema no rosto.
Com meu irmão mais velho foi diferente. Ele ainda não aceita muito bem e temos uma relação um pouco complicada. Ele segue uma religião que sustenta que estou fazendo uma coisa errada, então acabou não aceitando. Minha irmã mais nova já é bem tranquila.
Eu, na verdade, também não sabia por muito tempo sobre o que era uma mulher trans. O que tinha conhecimento era em relação às travestis, que carregavam alguns estigmas e não me identificava. Com o passar dos anos, pesquisando por conta própria em leituras, acabei verificando que a transgênero batia com o que me identificava. Isso aconteceu há dez anos.
Passei a tomar hormônios por conta própria, injetando em meu corpo, o que era muito errado e perigoso. Não recomendo a ninguém. Contudo, logo em seguida, procurei um ambulatório especializado em Curitiba, com todo o aparato profissional, como médicos, psicólogos e psiquiatras. Eles me explicaram tudo e iniciei o tratamento bem certinho.
Em 2014, descobri a feminização facial, com o remodelamento do rosto. Guardei dinheiro e fiz o procedimento no ano seguinte. Foi até curioso porque passei um bom tempo olhando no espelho sem me reconhecer. Como nunca segui muito a regra em relação ao cabelo na corporação, como deixa-lo certinho na régua, ao informar aos superiores no fim de 2019 sobre a transição, deixei crescer ainda mais e comecei a usar brinco.
"Sempre me preparei para o pior na corporação"
Como a minha família é tradicional, a criação me fez escolher a Polícia Militar. Quando éramos crianças, por exemplo, nossos pais nos levavam para eventos muito masculinos e chegávamos a manusear armas na infância. Na família têm bastante militares, tanto de polícias quanto do Exército. Então depois de terminar o ensino médio, iniciou a pressão para entrar na corporação.
Só que, ao entrar para a Polícia Militar, procurei tudo o que havia de mais perigoso por causa dessa minha revolta pessoal. Fazia os cursos mais esgotantes, cheguei a ir a missões da Força Nacional e sempre topava quando precisavam de voluntários para algo que expusesse a pessoa ao perigo. Era como se estivesse procurando algo para dar errado.
Com o passar dos anos, fui amadurecendo. Quando eu comuniquei da transição à corporação, eu e meu comandante fizemos uma espécie de acordo. Tinha uma licença para tirar e a usei para não chegar de surpresa no dia seguinte já de outra maneira. As pessoas precisavam saber da informação antes.
A PM orientou toda a tropa, promovendo uma palestra sobre o que é identidade de gênero, durante este período que estava fora. Houve uma preparação para o meu retorno. O gesto foi uma surpresa bem positiva.
Sempre me preparei para o pior na corporação, porém, quando procurei os superiores para comunicar da transição, recebi diversas mensagens de militares me dando apoio. Acredito que isso acabou sendo reflexo do meu histórico profissional duradouro e empenhado dentro da polícia.
"Agora quero ser mais militante"
Depois de superar essa batalha pelo reconhecimento, aos 43, quero continuar trabalhando com amor. Carrego uma responsabilidade muito grande para futuros militares trans, já que qualquer coisa de errado poderá servir de pretexto para não aceitarem mais.
Após tudo isso, vejo que meu caso servirá de exemplo para demais pessoas que tenham o mesmo desejo dentro da PM ou futuros profissionais, pois agora a corporação sabe como lidar, já que fui a primeira em 185 anos da instituição.
Com meu nome alterado no sistema de registro da PM, agora pretendo retornar às ruas. Ainda quero ser mais militante, não apenas por mim, mas por outras pessoas trans como eu."
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