"Brasil precisa de cotas para mulheres em cargos de comando", diz executiva
Nascida em Portugal, filha de pais analfabetos e criada no Brasil desde os 7 anos, Maria Fernanda Teixeira começou a trabalhar aos 15 e casou-se aos 17, quando foi demitida - o banco em que ela trabalhava não incentivava mulheres a se casar ou ter filhos.
Mas ela guarda com carinho a experiência, por dois motivos. O primeiro é que esse emprego a colocou em contato com a tecnologia. O outro é que as "dificuldades, preconceito e machismo logo cedo fizeram surgir meu propósito de vida: lutar por equidade de gênero e fazer com que o trajeto das mulheres ao topo de grandes organizações seja justo e sem as grandes dificuldades pelas quais eu passei".
Maria Fernanda conta essa história no e-book "Como?", lançado pelo Grupo Mulheres do Brasil, organização criada em 2013 por 40 executivas para engajar a sociedade brasileira na conquista de melhorias para a situação das mulheres. Tem como presidente a empresária Luiza Helena Trajano e conta com mais de 75 mil participantes. Maria Fernanda, que hoje é conselheira de várias empresas e foi CEO de multinacionais, ocupa voluntariamente, como todas, o cargo de líder do Comitê 80 em 8, de quem partiu a iniciativa do e-book.
Para Universa, Maria Fernanda defende uma lei de cotas para que mulheres ocupem mais espaços nos postos de liderança e explica porque isso pode ser positivo para a economia brasileira, para os consumidores e para as próprias empresas.
UNIVERSA - O que é o Comitê 80 em 8, do Grupo Mulheres do Brasil?
MARIA FERNANDA TEIXEIRA - Faz muito tempo que eu, a Luiza Trajano e outras mulheres trabalhamos para elevar mais mulheres para o topo das organizações. Há sete anos e meio, resolvemos criar o grupo Mulheres do Brasil para estruturar isso. O primeiro comitê foi o 80 em 8. Naquela época, uma pesquisa dizia que no Brasil demoraria 80 anos para termos igualdade de mulheres nos conselhos de administração das empresas. O índice era apenas de 3% de mulheres em conselhos - se considerarmos donas de empresas e familiares, ele sobe um pouco, para 7%. Se você olhar o número hoje, depois de quase oito anos, ele não mexeu quase nada: não chega a 4% de mulheres conselheiras independentes e 8% considerando mulheres familiares ou donas.
Nosso ponto é o seguinte: tem muita mulher bem-preparada e experiente no mercado. Não é por falta de pessoas capacitadas, que já chegaram a cargos de vice-presidentes, diretoras. Mas sair daí e virar CEO está muito vagaroso.
Onde está o problema?
Tem várias maneiras de explicar o problema. Uma delas, para a qual não podemos fechar os olhos, é a cultura. Em países latinos, mas também em muitos asiáticos, a mulher sempre foi do lar, a pessoa de criar a família, cuidar dos filhos. Ela não tinha o papel de sustento, de ser chefe da tribo. Essa nova geração foi educada pelas mães de maneira que entendam que os papéis são os mesmos, que não importa quem está trazendo dinheiro para casa ou quem tem que cuidar de levar o filho ao médico ou à escola. Mas, pasme: os relatórios mais recentes mostram que essa ideia não mudou. Mesmo trabalhando fora, a mulher continua gastando muito mais horas dentro de casa, nas atividades domésticas não remuneradas, do que o homem. E isso mesmo nas novas gerações. Outra maneira de explicar o problema é que os CEOs hoje, na maioria homens, não estão engajados.
E que ações o comitê está implantando para buscar resolver isso?
O que a gente tem feito muito é chamar os homens para a conversa. E não só empresários do segmento privado, mas também do setor público, ONGs, setor misto. Nessa conversa, mostramos dados para provar para os homens o quanto melhora a economia, o business, o lucro, as vendas quando a empresa ou a instituição tem igualdade no topo. Na base não há problemas, as mulheres são até um pouco mais que 50%. Mas quando se fala de alta gerência, diretoria, vice-presidentes, CEOs e conselheiras, é muito pobre.
Não chamamos o homem para a conversa para acusá-lo de machismo. Não é só quantidade de mulheres, também tem um problema salarial grande, a diferença é de 27%. E, acredite, esses homens voltam para as suas empresas e começam a repensar tudo e a tomar decisões. Quando eles querem contratar uma pessoa para uma posição alta, muitas vezes nos procuram. E eu tenho uma lista de mulheres, basta me falar o setor e a senioridade desejada.
Do lado da mulher, quais são os maiores desafios para chegar ao topo?
Muitas vezes a mulher tem medo de dizer que está pronta para aquela função mais alta. Geralmente porque ela é responsável demais. Eu fui diferente, e acho que foi por isso que tive sucesso e consegui chegar a ser presidente de multinacionais e a cargos de conselho.
Nunca tive medo de dizer: eu quero esse cargo, eu topo fazer isso e, se não souber, vou aprender. Outra coisa é o próprio ambiente de trabalho. Quando mulheres estão no topo das empresas, elas se tornam mais humanizadas, com jornadas mais flexíveis.
Mas, se o homem não tiver essa flexibilidade também, a mulher vai continuar assumindo todos esses papéis. O homem tem que poder, na empresa, avisar que no dia seguinte vai ter que levar o filho ao médico e tudo bem. Mulheres não vão se sentir pressionadas porque têm outros afazeres se os homens tiverem também. Porque é isso que faz com que ela muitas vezes desista do trabalho.
Há quase oito anos, a mulher demoraria 80 anos para chegar a uma posição de igualdade de cargos e salários. Isso melhorou?
Isso piorou. Hoje fala-se em 107 anos. Por isso que nós do Mulheres do Brasil acreditamos em cotas, de maneira temporária, até que a gente ajuste essa grande diferença. Cota significa lei.
Nós criamos um projeto de lei e levamos para o Senado. Uma deputada [Dâmina Pereira, do Podemos-MG] já estava trabalhando fazia anos no projeto, que não ia para a frente. Nós então ajudamos, ajustando ele para aprovar cotas de até 30% de mulheres em conselhos administrativos de empresas públicas. Acreditamos que, se a mulher entrar no conselho, daí para baixo a gente consegue fazer a mudança mais rápido.
O projeto está na Câmara e meio parado por causa do momento do país. Fui inúmeras vezes para Brasília nesse trabalho, apresentando dados muito consistentes. E alguns senadores me perguntaram: como você quer que eu aprove um projeto de lei para ter 30% de mulheres nos conselhos se essas mulheres não existem? Criamos então uma lista de mulheres verdadeiras que entendemos que têm nível para ser conselheiras. Essa lista tem mais de mil nomes. E entregamos para eles. Só então podemos aprovar esse projeto de lei.
Quais são os números que vocês apresentam?
Por exemplo: a equidade de gênero, segundo dados do Instituto McKinsey de 2015, elevaria o PIB mundial de US$ 12 trilhões a US$ 28 trilhões. Empresas com pelo menos uma mulher na primeira linha de comando aumentam a margem de lucro em até 47%. No Brasil, os dados mostram que se a gente tivesse os 30% de mulheres em conselho de empresas e um pouco mais de mulheres como CEOs, o PIB aumentaria em mais de US$ 400 bilhões. Há razões para isso. A mulher, como é mais cuidadosa e pensa mais a longo prazo, toma menos risco - e isso não é uma crítica aos homens, é apenas uma diferença até biológica e antropológica de perfil.
E, quando as mulheres são CEOs ou estão nos conselhos, a empresa entende melhor o que o consumidor quer. Aqui no Brasil, quase 70% da decisão de compra é da mulher. Imagina então uma empresa que vende serviço ou produto sem uma mulher lá em cima? Fora que, quando se trabalham em ambientes mais harmônicos e flexíveis, a produtividade aumenta. Por isso batemos na tecla que a única forma de mudar isso é com lei. Há mulheres que não concordam, porque alegam que chegaram lá sem precisar de lei, então por que outras não podem fazer o mesmo? Minha resposta é: para que sacrificar mais sei lá quantas gerações? Em 107 anos, nem a minha neta vai conseguir chegar em um conselho.
E o que eu e quem está nos lendo podemos fazer para provocar essa mudança?
Repensar, se questionar. Quanto seu marido, seu pai e seu irmão estão abertos a fazer divisões de atribuições em casa? Não estou falando de dinheiro. Muita mulher também acaba se resignando, pensando: mas é assim mesmo, para que vou brigar, pedir para lavar a louça? Esse tipo de diálogo precisa ocorrer nas famílias. Outra coisa que precisa mudar muito rápido é a educação dos filhos. Ainda se educa pensando em coisas de menino e coisas de menina. Nada de errado em dar uma boneca para a menina, mas por que não dar uma cozinha para o menino? Elas têm que ser educadas a dividir tarefas em casa.
Você é da tecnologia, uma área com poucas mulheres. Como isso pode mudar?
É uma vergonha a quantidade de mulheres que trabalham com tecnologia, a base geral tem só 20%. A mulher cresce acreditando que matemática e lógica não são para ela. A ciência já provou que a mulher tem a mesma capacidade de raciocínio lógico que o homem. Só que a gente é criada como se não fosse. Você tem ideia da dimensão de risco que isso significa? Já estamos, há mais de dez anos, falando de inteligência artificial. E não tem mulher desenvolvendo isso. Imagina o modelo mental que está sendo criado. Estamos desenvolvendo uma inteligência artificial que vai perpetuar o raciocínio do homem e os vieses que ele tem. Veja os carros autônomos, guiados por inteligência artificial. Um exemplo bem bobo: você está a 100 km/h e a pista bifurca. Se você virar para a esquerda, atropela uma criança. Se virar para a direita, um casal de idosos. É o homem que está controlando essa decisão. Não tem uma mulher participando desse debate.
Você não tem uma boa notícia para dar a respeito da equidade de gênero?
Uma coisa boa que está acontecendo é a ESG - ou ASG no Brasil. Ela quer dizer Ambiente, Social e Governança. E a diversidade está contemplada aí. Todas as diversidades, não apenas a de gênero. As empresas agora precisam garantir que têm uma governança correta, ética, que mulheres participem das decisões, que haja raças diferentes na empresa. E parece que o ESG veio para ficar, porque algumas grandes companhias não vão mais investir em quem não tem no mínimo um plano para abordar o ESG. Há outras boas iniciativas, como a do IFC, uma organização do Banco Mundial que dá empréstimos para projetos privados de países em desenvolvimento. Agora ele demanda que as empresas tenham pelo menos uma mulher no conselho. Se não tiver, não tem dinheiro.
Para você chegar ao cargo de CEO e nos conselhos, enfrentou preconceitos?
Todos que você pode imaginar. Como homem que tinha vergonha de me apresentar como chefe em reuniões com outras empresas. Tinha vergonha de ter que se reportar a uma mulher. Isso aconteceu em todos os degraus da minha vida, desde que virei supervisora, meu primeiro cargo de chefia. Quando se é presidente, não muda. Outro fato é o problema para ser escutada. Eu sempre fui a única mulher em reuniões, em fóruns. E sentia que o cara estava ouvindo minha opinião, mas não escutando. Mas, além da paixão, eu também sempre tive uma estratégia. Se você não tem, não chega lá.
Sempre perguntei para os meus chefes o que era preciso para chegar na posição deles. O que eu tenho que aprender, para onde tenho que ir, que curso devo fazer? Perguntava até se ele pensava em sair da posição ou se poderia me indicar um cargo igual em outro departamento.
Também é preciso ter mentores e ter presença. Eu me impunha usando a feminilidade. Nunca deixei de usar brinco ou maquiagem, nunca quis me masculinizar. Você se sente muito sozinha nesses cargos, por isso até hoje tenho mentoria. E foi preciso estudar muito. Não parei ainda. Vou começar agora um curso online no MIT (Massachusetts Institute of Technology).
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