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Quem é Ofelia Fernández, deputada argentina de 20 anos que peitou Bolsonaro

A deputada argentina Ofelia Fernández - Barbara Leiva/Divulgação
A deputada argentina Ofelia Fernández Imagem: Barbara Leiva/Divulgação

Marcelle Souza

Colaboração para Universa

07/03/2021 04h00

Quando a Argentina aprovou no Senado a legalização do aborto até a 14ª semana de gestação, em dezembro de 2020, o presidente Jair Bolsonaro foi ao Twitter para lamentar "profundamente pelas vidas das crianças argentinas" e dizer que, se depender dele, "o aborto jamais será aprovado" no Brasil.

Logo em seguida, o presidente recebeu uma resposta do país vizinho: "Muito boa a opinião que ninguém te pediu", publicou a deputada Ofelia Fernández, 20 anos, uma das principais vozes pela legalização do aborto na Argentina.

Além de respondê-lo, ela fez questão de mandar um recado a Bolsonaro: "Aproveito para recomendar que não relaxe, que a força feminista latino-americana no Brasil se soma à fúria por Marielle [Franco]. Por sorte, isso acaba de começar", disse Ofelia, que integra o bloco da Frente de Todos, coligação do presidente Alberto Fernández, que apoiou o projeto.

A jovem, eleita por um partido de esquerda, fez parte dos protestos do movimento Ni Una Menos em 2015 e 2016, quando milhares de mulheres marcharam nas ruas contra violência de gênero. Na época, Ofelia fazia parte do movimento estudantil e chamava a atenção pelo discurso afiado e a militância política. "O que incomoda de verdade é ser mulher, jovem e representante de uma juventude organizada e irreverente em um espaço político do campo nacional e popular", disse ela em entrevista a Universa quando estava prestes a assumir o cargo.

Alvo de ofensas machistas na internet e subestimada por sua idade, ela já respondeu, ao vivo e para todo o país, a um jornalista: "Não me chame de mocinha". No ano passado, Ofelia esteve na lista dos dez líderes da próxima geração pela revista "Time", que destacou a participação da deputada na luta pela legalização do aborto.

Nessa entrevista a Universa, Ofelia comenta as próximas pautas do movimento feminista na Argentina, o machismo no Legislativo, a postura do presidente Bolsonaro e a influência da vereadora Marielle Franco, assassinada em 2018 no Rio de Janeiro, sobre a sua forma de fazer política. "Acho que ela nos convoca a pensar e a construir as lutas com um profundo sentido de interseccionalidade", diz ela, sobre a necessidade de uma agenda feminista pautada também pelas questões de classe, raça e orientação sexual.

UNIVERSA - O que você acha que o feminismo latino-americano aprendeu com a luta pela legalização do aborto na Argentina?

OFELIA FERNÁNDEZ - Eu acho que foi a demonstração de que, enquanto feministas, temos capacidade estratégica. De maneira autogerida, horizontal e contracorrente, fundamos um acordo reivindicativo, que se expressou com uma psicologia própria, como foi o lenço verde, que alcançou muitos países da região. Demonstramos que as conquistas político-institucionais não se levam adiante só com a vontade, mas expressando e articulando uma exigência organizada. Obviamente, a luta transborda o aborto legal, houve uma dimensão educativa na discussão, porque se fala da implementação da Lei de Educação Sexual Integral; e serviu também para pensar pessoas que gestam, mulheres ou não, e essa é uma lição para levar a outros debates também.

Ofelia - Barbara Leiva/Divulgação - Barbara Leiva/Divulgação
A deputada argentina Ofelia Fernández ao lado de cartaz pró-direito ao aborto que diz "A hora é agora", em tradução livre
Imagem: Barbara Leiva/Divulgação

Com essa conquista, quais são as próximas lutas das feministas na Argentina?

Esse é um debate aberto, para consolidar uma etapa de massa do movimento feminista na Argentina. Existem muitas propostas para os próximos passos. Um primeiro ponto, que começou a ganhar contundência nas últimas semanas, é o da reforma judicial feminista, recuperando a experiência de construção do Ni Una Menos em termos de denúncia, com a intenção de gerar uma proposta em relação à problemática dos feminicídios em 2020. Estatisticamente, existem as mulheres que denunciaram e não foram escutadas e as que não denunciaram porque não confiam em um processo revitimizante, como o do Poder Judiciário na Argentina. Essa é uma proposta, mas existem outros pontos.

Acredito que a discussão em torno dos cuidados deve ter certa urgência. O ano de pandemia mostrou que a jornada doméstica é praticamente uma jornada de trabalho, então temos que ter um sistema que reconheça isso. Pensar no cuidado é também pensar em discutir o reconhecimento econômico a tarefas que estão feminilizadas e que têm altos níveis de precarização ou de abandono, como a enfermagem e toda a primeira linha de cuidado na pandemia —que se aplaudem nas sacadas, mas que não se reconhecem como tal.

Um terceiro ponto da agenda feminista que eu acho que temos que levar adiante é a emergência habitacional e de trabalho da população travesti e trans. Todos os números preocupantes de desigualdade social na Argentina e no mundo são potencializados no caso desse grupo.

Por que você decidiu responder ao presidente Jair Bolsonaro no Twitter, quando ele comentou a legalização do aborto na Argentina? Como você vê Bolsonaro no cenário internacional e latino-americano em relação às pautas de gênero?

O tuíte foi no calor no momento, eu não planejei. Eu vi a publicação e pensei "vou postar algo". Eu tinha a intenção de manifestar que não importava o que ele tinha a dizer, que no Brasil também se poderia conquistar a legalização do aborto. Para muitas de nós, o dia seguinte da aprovação da lei foi de pensar que lindo seria ir pintando de verde o mapa, que impulsionasse as feministas latino-americanas para avançar nessa agenda. Então, tinha a ver com intensificar essa aliança, mas também para lembrar, em termos de simbologia, o caso de Marielle Franco, que é emblemático não só para o movimento no Brasil, mas também para toda a América Latina.

Então fui movida por essas sensações, por um processo mediado pelo maior dos conservadorismos, por níveis de violência explícita e configuradas como tal, especuladas eleitoralmente, que obviamente nos preocupam e que têm impacto não só para a população do Brasil, mas para o continente todo.

Bolsonaro é hoje o exemplo, a imagem de algo que dirigentes da ultradireita tentam em todo o continente latino-americano. Inclusive, a estratégia que a igreja evangélica desenvolve tem intenções regionais, não só locais, no caso do Brasil. Então, obviamente, há que se prestar atenção e ter muito cuidado.

De que maneira a história de Marielle Franco te influencia?

É a demonstração da tentativa de disciplinar e de lesionar quem decide empreender lutas e ocupar espaços a serviço de causas justas, de profundo igualitarismo, profundamente radicalizadas, por sermos defensoras das mulheres. Por conta da violência política, existe uma tentativa de disciplinar a todas.

Então o caso de Marielle obviamente tem também essa intenção. Não quiseram calar só o seu processo, mas também domesticar tudo que a rodeava. Obviamente eu me vejo interpelada por esse enquadramento. Acredito que Marielle é um exemplo dos debates que ela nos deixa, quais obrigações ou responsabilidades nos deixa na hora de pensar nossos objetivos. Acho que ela nos convoca a pensar e a construir as lutas com um profundo sentido de interseccionalidade.

Em São Paulo, tivemos no ano passado o caso de uma deputada assediada no plenário por um colega. Você já sofreu algum tipo de violência no ambiente legislativo?

Não soube desse caso, que horror... Por sorte, não passei por nada nesse nível, com essa lógica de impunidade, de tal magnitude. No meu caso tem também o fator idade, porque sou jovem, e aí essa violência se cruza com algo muito paternalista, de subestimação duplicada, que tem uma dinâmica de indiferença ou ternura, que em nenhum dos dois casos me completa.

Acho que estamos colocando em questão o tema da violência política concretamente e isso nos dá força para restringir ao máximo possível dinâmicas como essas. Obviamente elas seguirão aparecendo, mas acho que temos consolidadas uma série de ferramentas que nos permitem estar um pouco tranquilas.

Aí existe uma receita que tem bastante peso: o fato de as feministas terem visibilidade na Argentina faz com que não estejamos em espaços como esses. As alianças que nós feministas tecemos dentro das instituições de poder são o que nos ajuda a conter esse nível de violência.

Ofelia - Killiari Productora/Divulgação - Killiari Productora/Divulgação
Ofelia com o lenço verde que simboliza a luta pelo direito ao aborto na Argentina
Imagem: Killiari Productora/Divulgação

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Ofelia durante a assinatura de seus primeiros projetos legislativos
Imagem: Divulgação

A Argentina tem 40% de participação de mulheres no Legislativo, uma taxa alta para a região. No Brasil, não chegamos a 15%. Por que a Argentina alcançou esse número?

Nas estatísticas, a lei de cotas [que subiu para 50% de mulheres em 2019] é a que garante e obriga essa distribuição dos espaços de decisão. Ela vem de um processo de muito tempo das mulheres, de diagnosticar a divisão de tarefas nas suas próprias estruturas partidárias.

Por mais que se cumpra a lei de cotas, ela não é suficiente, porque na hora de medir a participação política das mulheres é preciso prestar a atenção às agendas que têm espaço e quem centraliza essas definições.

Então, no plano institucional, não é só ver quantas existem, mas também em quais comissões, que costumam ser de gênero, de desenvolvimento social, por essa dinâmica do cuidado, como algo mais "feminino". Jamais somos as que presidem comissões de orçamento. Não que sejam agendas mais importantes do que as que ocupamos hoje, mas esse lugar reproduz os mesmos estereótipos de sempre.

Como você reage à violência que sofre nas redes sociais por ser mulher e jovem?

Acho que o mais irritante para eles é eu ser jovem e mulher a serviço de certo projeto político. Obviamente, mulheres liberais, de outros partidos, não sofrem o mesmo. No meu caso, passa pelo fato de que não sou uma exceção, ao contrário, respondo à categoria jovem e mulher militante, não é algo que só eu cumpro. Aí está a chave.

A violência que exercem sobre mim, a obsessão, os ataques e as mentiras tendem a demonstrar o preço que tem esse objetivo. Então eu trato de ser o mais forte possível, para demonstrar que, ao final do dia, vale a pena.

O que te motiva a ser deputada?

Pessoalmente, a pressão e a carga são muito altas, o que eu já sabia. O Legislativo de Buenos Aires [onde ela é deputada] tem, frente à sociedade, uma dinâmica de silêncio e impunidade. As pessoas não sabem o que se passa, o que se vota, quem está aqui. Talvez não seja assim no Congresso Nacional brasileiro. Por outro lado, desde que assumi o cargo, parece que sofro um escrutínio e uma auditoria permanentes, não da própria legislatura, o que seria ideal, mas da minha vida pessoal.

Para mim, ocupar esse espaço tem um custo bastante alto emocional, física e energeticamente. O que me move a ser deputada, inclusive diante de tanta hostilidade, tem a ver com um sentido de oportunidade. Explico: se eu não fosse da capital federal, de classe média, branca, entre outras coisas, possivelmente não seria a primeira. Reconheço a minha situação de privilégio, quero que essa porta não se feche atrás de mim. Eu militei e militarei toda a minha vida, e me entusiasma pensar em estar perto das definições de poder e desenvolver propostas em que eu acredito.

Como você recebeu o anúncio de que a revista "Time" tinha te colocado na lista dos dez líderes da próxima geração?

Foi muito emocionante. Para mim, é muito valioso que exista um segmento em uma revista de tanto alcance com a intenção de reconhecer processos jovens. Fiquei muito feliz, muito agradecida por ocupar esse lugar. Foi um dia muito especial para mim, sobretudo pelo que se gerou aqui na Argentina, um dia de muito carinho, muita gente aproveitou para me transmitir o orgulho que veem nesse processo. Foi meio que um aniversário.

Ao assumir como deputada, você leu um texto que escreveu aos 15 anos sobre o medo de andar pela rua e ser assediada, mesmo morta, por ser mulher. Você ainda sente esse medo?

Sim, óbvio. Acho que a organização tenta vencer o medo, mas a realidade não se transforma com a profundidade em que desejamos. Por mais que esteja em permanente contato com esse processo de transformação, não deixo de andar na rua com a sensação permanente de desigualdade e de insegurança. Isso que eu tentava expressar no texto, do medo como uma sensação bem física, no seu momento mais extremo, nesse trânsito no espaço público.

O mais triste é que não existe uma só metáfora para nomear esse medo, porque muitas mulheres morrem em suas casas, o que na pandemia ficou muito claro. O que deveria ser um lugar seguro, para muitas acaba sendo seu leito de morte.

A vida profissional também está mediada pelo medo, seja por assédio no trabalho como pelo acesso desigual a oportunidades. A sensação é de injustiça. Sou otimista em relação à luta que estamos levando adiante, mas ainda falta muito para a realidade ser como sonhamos.