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Gina Rippon: ela desbancou a fake news de que o cérebro feminino é inferior

A neurocientista britânica Gina Rippon, autora do livro Gênero e os Nossos Cérebros (Ed. Rocco) - Divulgação
A neurocientista britânica Gina Rippon, autora do livro Gênero e os Nossos Cérebros (Ed. Rocco) Imagem: Divulgação

Caio Delcolli

Colaboração para Universa

08/03/2021 04h00

Você já deve ter se deparado com vídeos de "chá de revelação", em que pais descobrem o gênero de bebês que nem sequer nasceram. "Esses eventos deveriam ser banidos", diz a Universa a neurocientista inglesa Gina Rippon, 70 anos, autora de "Gênero e os Nossos Cérebros", lançado recentemente pela Rocco.

No livro, Rippon, que também é feminista e professora emérita de neuroimagem cognitiva na Universidade de Aston, em Birmingham, desbanca a tese de que o cérebro feminino é biologicamente inferior ao masculino, um mito que surgiu no século 19 para reforçar a submissão da mulher na estrutura patriarcal. Isso aconteceu antes mesmo de a tecnologia tornar possível o exame de cérebros.

"Gênero e os Nossos Cérebros" tem quase 450 páginas, nas quais a cientista apresenta uma pesquisa ampla e profunda — passando também por como a comunidade científica permitiu que essa "fake news" circulasse por aí há séculos — para embasar o argumento central de que, não, homens e mulheres não são essencial e evidentemente distintos um do outro do ponto de vista biológico. E que a sociedade é a responsável por atribuir estereótipos, que nos acompanham antes mesmo de nascermos, a ambos os grupos.

Confira a seguir a entrevista da autora a Universa.

Como o feminismo se mistura com sua carreira na ciência?

GINA RIPPON - Eu me envolvi bastante com o movimento feminista nos anos 1980 e 1990. Essa foi a época em que feministas denunciaram como a biologia havia sido instrumentalizada contra as mulheres, para justificar a posição inferior delas na sociedade com base em uma biologia inferior. A mensagem central era que a biologia era irrelevante para entender a desigualdade de gênero.

Isso me fez olhar com mais atenção para minha própria pesquisa e começar a entender que, para compreender a conexão entre cérebro e comportamento, nós também precisávamos considerar fatores tanto externos quanto internos. Este é o carro-chefe do meu trabalho contínuo em busca de entender as diferenças entre sexo e gênero.

Como surgiram teorias como "a incapacidade das mulheres de ler mapas vem de diferenças estruturais no cérebro", citadas no seu livro?

O livro Gênero e os Nossos Cérebros (Ed. Rocco), da neurocientista britânica Gina Rippon - Divulgação - Divulgação
O livro Gênero e os Nossos Cérebros (Ed. Rocco), da neurocientista britânica Gina Rippon
Imagem: Divulgação

Na virada do século 19, a "ciência do cérebro" estava focada em explicar o status quo da sociedade. As mulheres tinham posições inferiores nela e na família, então o argumento vigente era o de que isso devia ter sido "causado" por cérebros inferiores. A situação se intersecciona com a "questão feminina" entre os poderes masculinos, no contexto das demandas das mulheres por mais direitos iguais, então era necessário mantê-las no lugar de inferioridade. Segundo essa lógica, a biologia determina diferenças inevitáveis, fixas e invariáveis.

Há um mito de que mulheres têm vocação natural para os cuidados do lar e dos filhos. Essas características atribuídas a elas têm relação com o tal do "cérebro inferior"?

A tese da inferioridade suavizou um pouco e se tornou uma armadilha complementar para outra falácia — a de que os cérebros das mulheres são adequados para habilidades "mais suaves", como empatia e cuidados, mas não para a lógica.

Existem, de fato, diferenças biológicas entre cérebros de homens e mulheres? Porque, segundo a tese dessas alegações, o que torna o cérebro da mulher diferente é a inferioridade, e não a superioridade.

Existe. Há algumas diferenças subcorticais entre o cérebro do homem e o da mulher, mas a nível celular, ou seja, a densidade dos receptores de hormônios, a densidade de espinhas dendríticas etc. Tudo isso se conecta, de alguma maneira, aos processos de reprodução.

No cérebro como um todo, a única diferença consistente é que o cérebro dos homens, na média, é maior que os das mulheres, mas isso acontece porque homens são, também na média, maiores que as mulheres. Uma vez que você corrige essa diferença, então as diferenças relatadas desaparecem quase que invariavelmente.

Existem milhares de pesquisas que reportam algum tipo de diferença entre o cérebro do homem e o da mulher, mas em primeiro lugar, essas diferenças não são, consistentemente, as mesmas, e pesquisas realizadas em larga escala confirmam isso. E em segundo, é muito raro que relatos de pesquisas tenham foco na inexistência de diferenças em tais estudos. No fim das contas, não há característica que faça a distinção, com confiabilidade, entre os cérebros do homem e os cérebros da mulher.

É importante que eu faça uma ressalva sobre a "média" que mencionei antes: a respeito das diferenças de sexo, em ambos os cérebros e no comportamento, vale mencionar que elas aparecem apenas em grupos muito grandes e que a distribuição de medidas em ambos os grupos é extremamente ampla e altamente sobreposta. Então, as diferenças dentro de cada grupo são maiores que qualquer discrepância entre eles.

Qual é a sua opinião sobre essas festas de revelação de gênero de bebês?

Elas são chocantemente terríveis. Nada dá um sinal mais claro que a importância artificial dada a ser homem ou mulher nesses eventos. Vinte semanas antes de um novo ser humano chegar a este planeta, nós já o colocamos em uma caixinha rotulada. A mulher creditada como "inventora" delas já se arrependeu. Essas festas têm sido associadas a incêndios florestais e acidentes fatais. Deveriam ser banidas!

A mentira sobre o "cérebro masculino" e o "cérebro feminino" começou a ser desconstruída?

Acho que o processo começou, mas há bastante trabalho pela frente, porque a crença está profundamente arraigada. Também há a suposição de que, se você não acredita no conceito do "cérebro feminino" — ou no de "cérebro masculino" —, está negando todas as diferenças entre os sexos ou alegando que o masculino é exatamente igual ao feminino. Eu e colegas com quem trabalho nessa área já fomos rotuladas de "negadoras das diferenças entre os sexos"! Cada cérebro é diferente do outro — e é de onde essas diferenças vêm e o papel que o sexo biológico pode ter em determiná-las que são as questões verdadeiramente importantes.

Mulheres que são líderes políticas, como as primeiras-ministras Jacinda Ardern, da Nova Zelândia, e Angela Merkel, da Alemanha, têm se destacado no combate à pandemia. Como vê isso?

Por um lado, é bom ver conquistas femininas sendo notadas e celebradas. Tenho esperança de que não estamos vendo a situação pela ótica do "fenômeno do cachorro que dança" — não precisa ser feito direito, porque é surpreendente que já esteja fazendo, em primeiro lugar!

No entanto, talvez a gente deva ser cuidadoso ao identificar características estereotipadas como razão do sucesso dessas mulheres — mais empáticas, entendem melhor o quadro em geral, entre outras — e cair nos mesmos estereótipos de sempre, caracterizados pelo conceito de que mulheres têm características únicas, trazem algo diferente à situação etc.

Essa "corroboração de viés" que afeta os debates nessa área talvez esteja operando nesse tema — essas líderes são bem-sucedidas apenas porque são mulheres ou são bem-sucedidas porque têm certas habilidades, talvez combinadas a fatores geográficos e políticos, perifericamente relacionadas ao fato de serem mulheres?

Esse mito está sendo propriamente confrontado pela comunidade científica?

Algumas pessoas da comunidade científica ainda são influenciadas pela agenda essencialista, pela ideia de que existe uma explicação biológica "interna" primária para as desigualdades de gênero na saúde física e mental e nas dinâmicas de poder e conquista que caracterizam nossa sociedade. Até que esses cientistas incorporem fatores psicossociais às suas pesquisas, as respostas a que vão chegar serão subinformadas.

Eles precisam reconhecer como nosso crescente conhecimento sobre a plasticidade vitalícia do cérebro humano deve impactar em quaisquer explicações essencialistas. A pesquisa sobre diferenças de sexo no cérebro, de onde elas vêm e, tão importante quanto, o que buscam dizer sobre os donos de cérebro, é tão importante que deve ser feita com seriedade.

Como avalia o papel dos meios de comunicação no tema? A mídia tem disseminado informações que mostram a fragilidade argumentativa e o machismo desse essencialismo?

A imprensa mainstream e a escrita científica popular ainda acham mais interessante qualquer estudo sobre diferenças entre o cérebro do homem e o da mulher do que quaisquer sugestões de que essas diferenças não existem. Geralmente, jornalistas usam expressões como "finalmente uma prova" e "finalmente a verdade" em títulos de matérias, o que sustenta esse tipo de crença entre os leitores, o que é preocupante.

Você é otimista sobre o futuro da igualdade de gênero?

Sou. Fico feliz por ver que o debate continua, e espero que melhor informado que antes e com mais engajamento. Entretanto, eu fico realmente frustrada com homens eruditos que descaracterizam o feminismo e confundem igualdade com oportunidades iguais para se chegar a resultados.

Por exemplo: nós não exigimos, necessariamente, que 50% dos cientistas sejam mulheres, mas exigimos que mulheres cientistas tenham o reconhecimento e a oportunidade que merecem. Eu gostaria de ver o debate assimilar a necessidade e a realidade de que o sexo biológico seja separado do gênero, que é algo embasado nas expectativas pessoais e sociais, em identidades e papéis. Uma verdadeira medida de sucesso seria a "irrelevância de gênero".

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